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Cartas ao Editor

Pneumonia lipoide em lactente de 40 dias de vida

Lipoid pneumonia in a 40-day-old infant

Maria Cristina Ribeiro dos Santos Simões, Ivan Felizardo Contrera Toro, José Dirceu Ribeiro, Adyléia Aparecida Dalbo Contrera Toro

Ao Editor:

A pneumonia lipoide é desencadeada por aspiração de lipídeos de origem endógena ou exógena.(1) Esta última é a mais frequente em crianças e geralmente é causada pelo uso de óleo mineral para o tratamento de constipação intestinal.(1,2) Trata-se de uma doença de difícil diagnóstico, com apresentação clínica e radiológica inespecífica e semelhante a várias doenças pulmonares, podendo ser inclusive assintomática.(1,3) A evolução crônica pode desencadear sequelas pulmonares, como bronquiectasias e fibrose pulmonar.(2) Embora a comunidade científica esteja emitindo alertas sobre os perigos da utilização do óleo mineral em crianças, a sua prescrição para a constipação intestinal ainda é rotina no Brasil, por ser uma medicação de baixo custo e de fácil aquisição.(1,2)

No caso aqui descrito, uma paciente de sexo feminino, com 40 dias de vida, deu entrada no pronto-socorro de um hospital secundário com história de gemência há quatro dias. No segundo dia do quadro, em atendimento ambulatorial, foi prescrito óleo mineral (pois a paciente não evacuava há 2 dias). Ao receber a medicação, a criança se engasgou e, desde aquele momento, passou a apresentar tosse e dificuldade respiratória. Recebia amamentação exclusiva e não apresentava antecedentes patológicos nem regurgitações. Ao exame físico, estava gemente, taquidispneica (FR = 80 ciclos/min), com sibilância e hipoxemia (SpO2 = 88%). O hemograma apresentava discreta leucopenia com diferencial de células normal, e a radiografia de tórax evidenciava opacidade alvéolo-intersticial bilateral e hiperinsuflação pulmonar (Figura 1). Amostras de hemoculturas foram negativas. Recebeu antibioticoterapia intravenosa (ampicilina), oxigenoterapia por tenda de oxigênio, fenoterol inalatório e fisioterapia respiratória. Após 7 dias de internação, mantinha alterações clínicas. O controle radiológico permanecia inalterado. Foi indicada a realização de TC de tórax, que demonstrou áreas de consolidação parenquimatosa acometendo segmentos de lobos superiores e inferiores com coeficientes de atenuação negativos (Figura 2), compatível com a hipótese diagnóstica de pneumonia lipoide com acometimento multissegmentar.






A criança foi transferida a um hospital terciário para a realização de broncoscopia e LBA. Foi submetida a três procedimentos sequenciais, realizados com broncoscópio rígido, sob anestesia geral endovenosa e ventilação a jato. No primeiro procedimento, descartaram-se alterações anatômicas. Foi encontrado material semelhante a uma película opalescente que atapetava a traqueia e brônquios. Foi realizada LBA em lobo inferior direito. O exame citológico coletado mostrou células com inclusões sugestivas de lipídeos.

Na segunda broncoscopia, havia secreção opalescente difusa em pequena quantidade. Foi realizada LBA em lobo inferior esquerdo, cuja análise demonstrou numerosas células com inclusão de lipídeos e raras estruturas sugestivas de gotículas de gordura. No terceiro procedimento, a LBA foi realizada no lobo superior direito. Também havia estruturas sugestivas de gotículas de gordura e numerosas células com inclusão de lipídeos.

A paciente evoluiu bem, com bom ganho ponderal, assintomática e com normalização radiológica.

O óleo mineral (parafina líquida ou vaselina líquida) é um produto secundário derivado da destilação de petróleo na produção de gasolina. Pode ser purificado para uso medicinal como hidratante (cremes) ou medicação laxativa em tratamento de constipação intestinal e quadro suboclusivo por ascaridíase maciça. Caracteriza-se como um líquido transparente de gosto desagradável, não absorvido no trato digestivo. Na luz intestinal, reduz a absorção de água e age como um lubrificante.(2) Apresenta baixa volatilidade e alta viscosidade, que produzem efeitos indesejáveis, como a diminuição do reflexo de tosse(1,2) quando aspirado e a redução do transporte mucociliar pulmonar por alterar propriedades viscoelásticas de secreções, dificultando o clareamento pulmonar.(2) A aspiração crônica de óleo mineral é facilitada por distúrbios de deglutição, doenças esofágicas e neuropatias, mas pode acontecer em pacientes sem predisposição anatômica ou anormalidade funcional,(4) assim como em pacientes que resistem à administração, como os lactentes.(1) Quando aspirado, rapidamente se difunde pela árvore brônquica. O óleo mineral não é metabolizado por enzimas pulmonares. Quando no espaço alveolar, é fagocitado por macrófagos alveolares.(1,5) Algumas dessas células penetram o tecido intersticial e atingem vasos linfáticos peribrônquicos e linfonodos hilares, mas a maior parte do óleo mineral permanece nos alvéolos, livre ou dentro dos macrófagos, que não conseguem metabolizá-lo, desintegrando-se e devolvendo-o ao espaço aéreo. A ativação de macrófagos no espaço aéreo promove a liberação de citocinas e reação inflamatória.(1,6) Inicialmente, acontece uma resposta inflamatória de corpo estranho. Posteriormente, desenvolve-se inflamação intersticial crônica com evolução para fibrose pulmonar. Esse círculo vicioso contribui para a cronicidade da doença, mesmo anos após a descontinuidade do uso do produto. Em estudos de anatomia patológica, a pneumonia lipoide se caracteriza pela presença de células gigantes, fibrose alveolar/intersticial e inflamação crônica. Dependendo do tempo de doença, podem-se encontrar, inicialmente, macrófagos intra-alveolares com lipídeos e paredes alveolares e septos normais. Lesões avançadas mostram grandes vacúolos e infiltrado inflamatório em paredes alveolares, paredes brônquicas e septos. Lesões mais antigas se caracterizam por fibrose e destruição de parênquima ao redor de grandes vacúolos com conteúdo lipídico.(7)

Radiologicamente, a pneumonia lipoide aguda apresenta-se como opacidade pulmonar bilateral, com distribuição segmentar ou lobar, envolvendo principalmente lobos posteriores e inferiores. Outras manifestações de pneumonia lipoide incluem nódulos, pneumatoceles e derrame pleural. Pneumomediastino e pneumotórax são raros e indicam pior prognóstico. A TC tórax pode revelar áreas de consolidação alveolar com baixa atenuação e padrão de vidro fosco.(4,5)

O diagnóstico de pneumonia lipoide deve ser baseado na história de ingestão de óleo mineral, associada aos fatores de risco acima descritos, aos achados clínicos e radiológicos e à demonstração de lipídeos no material coletado por broncoscopia, LBA ou biópsia pulmonar.(1,8) O fluido de LBA com achado de macrófagos com lipídeos é considerado como o exame mais importante para o diagnóstico.(1,2,8) Alguns pacientes podem ter cura espontânea após a suspensão do uso, mas pode haver complicações, como infecções bacterianas, fibrose progressiva, bronquiectasias, hemoptise e casos graves que progridem para falência respiratória e morte.(1,3,6) A melhor forma de tratamento não está bem estabelecida na literatura científica. Vários estudos têm mostrado a eficácia do tratamento com múltiplas LBAs, com poucos riscos e desaparecimento dos sinais clínicos e radiológicos.(1,2,5,8,9) Em pacientes com pneumonia que não responde a tratamento, a hipótese de pneumonia lipoide deve ser considerada no diagnóstico diferencial. Enfatizamos a recomendação de que a administração de óleo mineral para o tratamento de constipação intestinal crônica deve ser feita de forma criteriosa. Essa medicação não pode ser prescrita a recém-nascidos ou lactentes, que resistem à administração, assim como a crianças com atraso de desenvolvimento, com ou sem distúrbios de deglutição.

Maria Cristina Ribeiro
dos Santos Simões
Mestranda em Saúde da
Criança e do Adolescente,
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil

Ivan Felizardo Contrera Toro
Professor Doutor,
Departamento de Cirurgia,
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil

José Dirceu Ribeiro
Professor Associado,
Departamento de Pediatria,
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas (SP) Brasil

Adyléia Aparecida Dalbo Contrera Toro
Professora Doutora,
Departamento de Pediatria,
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP) Brasil


Referências


1. Sias SM, Ferreira AS, Daltro PA, Caetano RL, Moreira Jda S, Quirico-Santos T. Evolution of exogenous lipoid pneumonia in children: clinical aspects, radiological aspects and the role of bronchoalveolar lavage. J Bras Pneumol. 2009;35(9):839-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132009000900004

2. Bandla HP, Davis SH, Hopkins NE. Lipoid pneumonia: a silent complication of mineral oil aspiration. Pediatrics. 1999;103(2):E19. PMid:9925865.

3. Weinstein M. First do no harm: The dangers of mineral oil. Paediatr Child Health. 2001;6(3):129-31.

4. Betancourt SL, Martinez-Jimenez S, Rossi SE, Truong MT, Carrillo J, Erasmus JJ. Lipoid pneumonia: spectrum of clinical and radiologic manifestations. AJR Am J Roentgenol. 2010;194(1):103-9. PMid:20028911.

5. Sias SM, Daltro PA, Marchiori E, Ferreira AS, Caetano RL, Silva CS, et
al. Clinic and radiological improvement of lipoid pneumonia with multiple bronchoalveolar lavages. Pediatr Pulmonol. 2009;44(4):309-15. PMid:19283836.

6. Midulla F, Strappini PM, Ascoli V, Villa MP, Indinnimeo L, Falasca C, et al. Bronchoalveolar lavage cell analysis in a child with chronic lipid pneumonia. Eur Respir J. 1998;11(1):239-42. http://dx.doi.org/10.1183/09031936.98.11010239

7. Simmons A, Rouf E, Whittle J. Not your typical pneumonia: a case of exogenous lipoid pneumonia. J Gen Intern Med. 2007;22(11):1613-6. http://dx.doi.org/10.1007/s11606-007-0280-7

8. Picinin IF, Camargos PA, Marguet C. Cell profile of BAL fluid in children and adolescents with and without lung disease. J Bras Pneumol. 2010;36(3):372-85. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132010000300016

9. De Blic J, Midulla F, Barbato A, Clement A, Dab I, Eber E, et al. Bronchoalveolar lavage in children. ERS Task Force on bronchoalveolar lavage in children. European Respiratory Society. Eur Respir J. 2000;15(1):217-31. PMid:10678650.

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