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Editorial

Tratamento intermitente para TB e resistência

Intermittent treatment for TB and resistance

Marcus Barreto Conde

Estudos publicados nas décadas de 1950-60, demonstrando não haver diferença na taxa de cura e de recidiva de doença, bem como na taxa de adoecimento de contatos dos pacientes com TB tratados em regime de internação ou ambulatorial, foram o substrato científico para a adoção do tratamento ambulatorial da TB.(1-3) No entanto, a adoção dessa forma de tratamento na prática diária rapidamente mostrou problemas de adesão, que não foram tão evidentes no ambiente de pesquisa. Nesse contexto, estudos sobre a utilidade de regimes intermitentes como ferramenta de facilitação da supervisão do tratamento da TB começaram a ser realizados.(4,5) No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Alvarez et al. apresentam a prevalência de resistência do Mycobacterium tuberculosis em Brasília, onde o esquema rifampicina + isoniazida + pirazinamida, por 2 meses e, em seguida, rifampicina + isoniazida por 4 meses (2RHZ/4RH) é utilizado em regime intermitente (três vezes por semana) e de forma autoadministrada na fase de continuação do tratamento.(6) A questão do estudo é se o uso do regime intermitente autoadministrado se associou ou não a maior taxa de resistência do M. tuberculosis. Os dados do estudo são do inquérito nacional realizado entre 1995 e 1997, o qual mostrou que as taxas de resistência primária e de resistência adquirida à isoniazida em Brasília foram de 4,6% e 15,8%, respectivamente.(6)

As causas mais comuns de seleção de bacilos resistentes são a resistência a um ou mais dos fármacos anti-TB desde o início do tratamento (resistência primária) ou a não-adesão ao tratamento. Entre os diferentes níveis de não-adesão, os mais frequentemente associados à resistência são o abandono, a irregularidade (usar e parar de usar os medicamentos em períodos irregulares de tempo) e o uso incorreto dos medicamentos (usar somente alguns). Independentemente do mecanismo, o resultado final é o mesmo: falha terapêutica ou recidiva de doença. A história de tratamento prévio estabelece, com razoável segurança, a relação entre o primeiro episódio de TB e a ocorrência de resistência adquirida no segundo episódio de doença.(7) No entanto, uma revisão de nove ensaios clínicos internacionais utilizando os três medicamentos utilizados no Brasil (rifampicina, isoniazida e pirazinamida) mostrou que apenas 6% (11 em 178 recidivas) dos casos de recidiva de TB eram resistentes à isoniazida.(7) Esses achados sugerem que, entre os casos de TB inicialmente sensíveis, até 94% dos casos de recidiva seriam sensíveis também. No estudo de Alvarez et al., a taxa de resistência adquirida à isoniazida, tanto em Brasília (15,8%), quanto na média do Brasil (21,9%), foram muito superiores a 6%.(6) O fato do tratamento nos ensaios clínicos ter sido ­totalmente supervisionado (dois dos quais em regime intermitente) sugere que as possíveis causas implicadas na resistência adquirida na amostra de Alvarez et al. sejam mais ligadas a problemas de adesão. As taxas de resistência primária à isoniazida (4,6% em Brasília e 6,8% na média nacional) e as elevadas taxas de abandono de tratamento referidas na amostra do estudo (em torno de 25%, tanto em Brasília, quanto na média nacional) reforçam essa ­hipótese. Adicionalmente, o risco de falha (ou falência) terapêutica nos casos de resistência primária à isoniazida ou à rifampicina em pacientes usando regularmente o esquema RHZ também é baixo.(7) Assim, seria interessante conhecer o número de casos de retratamento devido ao abandono e à recidiva de doença, bem como os casos de falha terapêutica, de tratamento irregular e de uso incorreto dos medicamentos. Um estudo retrospectivo realizado no nosso meio não mostrou diferença significativa na taxa de resistência entre os casos de retratamento após o abandono e por recidiva, mas mostrou uma taxa significativamente maior de resistência no grupo de falência terapêutica.(8) Por outro lado, um ensaio clínico realizado no Rio de Janeiro, em que o braço de controle utilizou o esquema RHZ+etambutol (RHZE) administrado cinco vezes por semana nas primeiras oito semanas e de forma intermitente (com dose ajustada) duas vezes por semana na fase de continuação, sob observação direta, apresentou apenas quatro casos de recidiva de doença após cura, todos sensíveis à isoniazida e à rifampicina, reforçando a hipótese de que a recidiva de um caso inicialmente sensível também é sensível.(9)

A principal conclusão do estudo de Alvarez et al. é que não houve diferença significativa entre os índices de resistência observados no grupo sob esquema intermitente em relação ao grupo sob tratamento diário. Esse achado era o esperado, uma vez que já foi demonstrado que
o ciclo de crescimento bacilar que se segue ao período sem medicamentos, que poderia ser responsabilizado pela seleção de cepas resistentes em indivíduos sob regime intermitente, somente ocorre quando a intermitência é semanal (uma vez por semana), não ocorrendo em regimes com duas ou mais tomadas de medicamento com doses ajustadas.(5)

Apesar dos dados apresentados no artigo de Alvarez et al. refletirem a realidade de quase duas décadas atrás, dados recentes de um estudo de prevalência nacional (ainda não publicados) e informações do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (comunicação pessoal) indicam que a taxa de resistência à isoniazida aumentou. Em função disso, um quarto fármaco, o etambutol, será acrescentado ao esquema de tratamento, e o esquema 2RHZE/4RH será administrado sob a forma de fixed-dose combination, ou seja, com os quatro fármacos em um só comprimido. Embora o esquema com quatro fármacos já seja utilizado em praticamente todo o mundo, pelo crescente aumento na taxa de resistência à isoniazida, e esta iniciativa do Programa Nacional de Controle da Tuberculose seja bem-vinda, alguns pontos merecem reflexão. É sabido que, entre os casos de TB que apresentam resistência inicial somente à isoniazida ou somente à rifampicina, a chance de falência do tratamento com esquema RHZ, embora baixa, existe, e que a utilização do esquema RHZE a reduz a praticamente zero. No entanto, a chance de falência entre os casos com outros padrões de resistência (resistência à rifampicina+isoniazida ou à isoniazida+etambutol, por exemplo) tratados com o esquema RHZ é elevada e não é modificada pelo uso do esquema RHZE.(7) Adicionalmente, uma vez que acrescentar o quarto fármaco ao comprimido combinado aumenta o risco de problemas de biodisponibilidade da rifampicina, o cuidado com o padrão de qualidade do comprimido com fixed-dose combination deve ser extremo. Nesse contexto, é de grande importância que os resultados dessas intervenções sejam acompanhados, como ocorre em estudos clínicos de fase 4, e que centros médicos com capacidade de coletar dados sob o rigor de boas práticas clínicas produzam informações que permitam avaliar o impacto dessas intervenções.

A leitura do artigo de Alvarez et al. traz ainda à tona uma curiosidade. Embora existam dados sugerindo não haver diferenças entre os regimes diário e intermitente autoadministrados, mais informações sobre os resultados dessa forma de tratamento em um contexto operacional seriam importantes.(10)

As crescentes taxas de resistência, bem como a possível baixa adesão associada a elas, sugerem que, além de acrescentar o quarto fármaco e utilizar comprimidos com fixed-dose ­combination (medidas mais direcionadas ao combate da resistência primária à isoniazida e ao uso incorreto dos medicamentos), é importante que se busque ferramentas que diminuam o numero de casos com tratamento irregular e as taxas de abandono e que se faça todo o esforço necessário para que a cultura e o teste de sensibilidade sejam implementados para todos os pacientes portadores de TB.

Marcus Barreto Conde
Diretor Adjunto de Pesquisas do
Instituto de Doenças do Tórax da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro (RJ) Brasil


Referências

1. Tuberculosis Chemotherapy Centre Madras. A concurrent comparison of home and sanatorium treatment of pulmonary tuberculosis in South India. Bull World Health Organ. 1959;21:51-144.

2. Dawson JJ, Devadatta S, Fox W, Radhakrishna S, Ramakrishnan CV, Somasundaram PR, et al. A 5-year study of patients with pulmonary tuberculosis in a concurrent comparison of home and sanatorium treatment for one year with isoniazid plus PAS. Bull World Health Organ. 1966;34(4):533-551.

3. Kamat SR, Dawson JJ, Devadatta S, Fox W, Janardhanam B, Radhakrishna S, et al. A controlled study of the influence of segregation of tuberculous patients for one year on the attack rate of tuberculosis in a 5-year period in close family contacts in South India. Bull World Health Organ. 1966;34(4):517-532.

4. Mitchison DA, Dickinson JM. Laboratory aspects of intermittent drug therapy. Postgrad Med J. 1971;47(553):737-41.

5. A controlled comparison of a twice-weekly and three once-weekly regimens in the initial treatment of pulmonary tuberculosis. Bull World Health Organ. 1970;43(1):143-206.

6. Alvarez TA, Rodrigues MP, Viegas CA. Prevalence of drug-resistant Mycobacterium tuberculosis in patients under intermittent or daily treatment. J Bras Pneumol. 2009;35(6):555-560.

7. Mitchison D A. How drug resistance emerges as a result of poor compliance during short-course chemotherapy for tuberculosis. Int J Tuberc Lung Dis 1998; 2: 10-15.

8. Melo FA, Penteado CB, Almeida EA, Spada DT, Santos MA. Resistência pós-primária do Mycobacterium tuberculosis às drogas antituberculosas segundo os antecedentes terapêuticos em uma unidade de referência na cidade de São Paulo. Bol Pneumol Sanit. 2002;10(2):21-26.

9. Conde MB, Efron A, Loredo C, De Souza GR, Graça NP, Cezar MC, et al. Moxifloxacin in the Initial Therapy of Tuberculosis: A Randomized, Phase 2 Trial. Lancet. 2009;373(9670):1183-9.

10. Castelo A, Jardim JR, Goihman S, Kalckman AS, Dalboni MA, da Silva EA, et al. Comparison of daily and twice-weekly regimens to treat pulmonary tuberculosis. Lancet. 1989;2(8673):1173-6.

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