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Cartas ao Editor

Tendências da mortalidade por tuberculose em crianças e adolescentes no Brasil, 1996-2020: análise de pontos de inflexão

Trends in tuberculosis mortality among children and adolescents in Brazil, 1996-2020: a joinpoint analysis

Tyele Goulart Peres1, Yasmin Marques Castro2, Mariana Lima Corrêa3, Leonardo Ramos Emmendorfer4, Linjie Zhang5

DOI: https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20230019

 
AO EDITOR,
 
A tuberculose ainda é uma das doenças infecciosas mais mortais em todo o mundo. Estima-se que, em 2020, 1,5 milhões de pessoas em todo o mundo tenham morrido em decorrência da tuberculose; 16% eram crianças ou adolescentes (< 15 anos de idade).(1) Embora o risco de infecção e morte por tuberculose seja alto em crianças, a tuberculose infantil tem sido negligenciada por pesquisadores e formuladores de políticas há décadas. Essa negligência pode ser explicada pela dificuldade em diagnosticar a tuberculose em crianças; pelo baixo risco de transmissão da tuberculose infantil; pela fé equivocada na vacina BCG e pelo velho ditado de que a melhor forma de prevenir a tuberculose infantil é tratar a tuberculose em adultos.(2) Para atingir a meta da End TB Strategy (Estratégia para Acabar com a TB) da OMS de reduzir em 95% a mortalidade por tuberculose até 2035, é preciso dar maior prioridade a crianças e adolescentes, especialmente àqueles nos 30 países com a maior carga de tuberculose (entre os quais está o Brasil). Embora haja muitos relatos de mortalidade nacional e global por tuberculose na população geral,(3-5) há dados limitados a respeito da mortalidade por tuberculose na população pediátrica.(6) Portanto, realizamos uma análise de pontos de inflexão para identificar as tendências temporais da mortalidade por tuberculose em crianças e adolescentes no Brasil no período de 1996-2020.
 
Usamos um banco de dados de acesso aberto (o banco de dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) para coletar dados a respeito do número de óbitos decorrentes da tuberculose, além de dados sobre estimativas populacionais de crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 19 anos entre janeiro de 1996 e dezembro de 2020. A tuberculose foi classificada pelos seguintes códigos da CID-10: A15: tuberculose respiratória, confirmada bacteriológica ou histologicamente; A16: tuberculose respiratória, não confirmada nem bacteriológica nem histologicamente; A17: tuberculose do sistema nervoso; A18: tuberculose de outros órgãos; A19: tuberculose miliar. Calculamos a taxa de mortalidade por tuberculose por 100.000 habitantes. Usamos a análise de regressão por pontos de inflexão (Joinpoint Software, versão 4.9.0.0; National Cancer Institute, Information Management Services, Inc., Calverton, MD, EUA) para estimar a variação percentual anual (VPA) das taxas de mortalidade entre pontos de alteração da tendência, a VPA média (VPAM) durante o período de estudo e os IC95%. Quando não há pontos de inflexão (isto é, sem alteração da tendência), a VPA é constante e igual à VPAM; caso contrário, todo o período é segmentado pelos pontos com alterações da tendência (tendência crescente, tendência decrescente ou sem alteração da tendência). Nesse caso, a VPAM é calculada como média ponderada da VPA estimada em cada segmento usando os comprimentos dos segmentos como pesos.(7)
 
Durante o período de estudo, 3.072 crianças e adolescentes morreram em decorrência da tuberculose. Destes, 2.047 (66,6%) tinham tuberculose respiratória (A15, n = 228; A16, n = 1.819), 517 (16,8%) tinham tuberculose do sistema nervoso, 129 (4,2%) tinham tuberculose de outros órgãos, e 379 (12,4%) tinham tuberculose miliar. Aproximadamente 47% das 3.072 crianças e adolescentes que morreram durante o período de estudo eram do sexo feminino, e 76% não eram brancos. Além disso, 892 (29%) estavam na faixa etária de 0 a 4 anos, 276 (9%) estavam na faixa etária de 5 a 9 anos, e 1.904 (62%) estavam na faixa etária de 10 a 19 anos. A taxa global de mortalidade por tuberculose (por 100.000 habitantes) diminuiu de 0,32 em 1996 para 0,17 em 2020, e o número absoluto de óbitos diminuiu de 212 para 101 no mesmo período. As taxas de mortalidade por tuberculose (por 100.000 habitantes) em 1996/2020 foram de 0,48/0,16, 0,15/0,05 e 0,33/0,22 em crianças/adolescentes na faixa etária de 0 a 4 anos, na faixa etária de 5 a 9 anos e na faixa etária de 10 a 19 anos, respectivamente.
 
A VPAM (IC95%) da taxa de mortalidade por tuberculose durante o período de estudo foi de −2,8% (−4,6 a −1,0), −4,2% (−7,3 a −0,9), −3,3% (−5,3 a −1,3) e −1,4% (−3,3 a 0,5) na amostra total, na faixa etária de 0 a 4 anos, na faixa etária de 5 a 9 anos e na faixa etária de 10 a 19 anos, respectivamente (Tabela 1). A análise dos pontos de inflexão identificou três tendências da mortalidade por tuberculose na amostra total: o período de 1996-2005, com uma tendência decrescente maior (VPA: −7,9%; IC95%: −10,0 a −5,7), o período de 2005-2017, com uma tendência decrescente menor (VPA: −2,3%; IC95%: −4,0 a −0,6) e o período de 2017-2020, com uma tendência crescente não significativa (VPA: 11,8%; IC95%: −1,5 a 26,9). Na faixa etária de 0 a 4 anos, a análise dos pontos de inflexão identificou uma tendência decrescente no período de 1996-2015 (VPA: −8,5%; IC95%: −10,3 a −6,7) e uma tendência crescente não significativa no período de 2015-2020 (VPA: 14,4%; IC95%: −1,7 a 33,1). Na faixa etária de 10 a 19 anos, a análise dos pontos de inflexão identificou uma ligeira tendência decrescente no período de 1996-2016 (VPA: −3,4%; IC95%: −4,4 a −2,5) e uma tendência crescente não significativa no período de 2016-2020 (VPA: 9,3%; IC95%: −2,2 a 22,0).

 
De modo geral, a taxa de mortalidade por tuberculose em crianças e adolescentes no Brasil diminuiu nas duas últimas décadas, com VPAM de −2,8%. A taxa global de mortalidade por tuberculose e o número absoluto de óbitos nessas faixas etárias são relativamente baixos. No entanto, pelo menos três achados deste estudo merecem atenção. Em primeiro lugar, a tendência crescente não significativa da mortalidade por tuberculose com VPA de 11,8% no período de 2017-2022 ressalta a necessidade de confirmar essa tendência por meio de vigilância nacional contínua dos óbitos decorrentes da tuberculose entre crianças e adolescentes no Brasil. Em segundo lugar, 76% do total de óbitos decorrentes da tuberculose foram observados em indivíduos que não eram brancos; essa taxa é muito superior a 56%, que é a proporção de indivíduos não brancos na população de crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 19 anos. É possível que a taxa de mortalidade por tuberculose desproporcionalmente alta entre crianças e adolescentes não brancos reflita as desigualdades socioeconômicas observadas no Brasil e que dão origem a diferenças quanto à exposição e vulnerabilidade à infecção e doença, bem como ao acesso ao diagnóstico e tratamento imediatos. Em terceiro lugar, crianças/adolescentes na faixa etária de 10 a 19 anos corresponderam a 62% do total de óbitos decorrentes da tuberculose; essa taxa é superior à proporção de crianças/adolescentes nessa faixa etária na população pediátrica (isto é, 52%). Além disso, a taxa de mortalidade por tuberculose nessa faixa etária não diminuiu significativamente ao longo do período de estudo, com tendência crescente não significativa e VPA de 9,3% no período de 2015-2020. O período entre a adolescência e o início da idade adulta é cada vez mais reconhecido como um período-chave para a doença tuberculosa e desfechos adversos.(8) É possível que a taxa de mortalidade por tuberculose mais alta entre adolescentes esteja relacionada com baixa adesão ao tratamento, altas taxas de perda de seguimento e aumento de comorbidades como coinfecção tuberculose/HIV, diabetes e uso arriscado de substâncias.(9) A tuberculose é relatada como causa básica em menos de 1% dos óbitos decorrentes de coinfecção tuberculose/HIV,(10) o que pode resultar em subestimação dos óbitos por tuberculose.
 
Não obstante o notável progresso na redução de casos de tuberculose e óbitos decorrentes da doença nas últimas décadas, o Brasil permanece entre os 30 países do mundo com a maior carga de tuberculose. Este estudo ressalta a necessidade de estabelecer uma estratégia nacional específica e eficaz para o controle da tuberculose infantil no Brasil, com prioridade à equidade racial na assistência à saúde e atenção especial aos pacientes adolescentes.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
TGP: concepção e desenho do estudo; coleta, análise e interpretação dos dados; redação do manuscrito. YMC: concepção e desenho do estudo; coleta e interpretação dos dados; revisão do manuscrito. MLC: interpretação dos dados e revisão do manuscrito. LRE: análise e interpretação dos dados; revisão do manuscrito. LZ: coordenação do projeto de pesquisa; concepção e desenho do estudo; interpretação dos dados; revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito enviado e concordam em ser responsáveis por todos os aspectos do trabalho.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2022 [cited 2022 Aug 8]. Global Tuberculosis Report 2021. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240037021
2.            Starke JR. Childhood tuberculosis: ending the neglect. Int J Tuberc Lung Dis. 2002;6(5):373-374. PMID: 12019911
3.            GBD Tuberculosis Collaborators. Global, regional, and national burden of tuberculosis, 1990-2016: results from the Global Burden of Diseases, Injuries, and Risk Factors 2016 Study. Lancet Infect Dis. 2018;18(12):1329-1349. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(18)30625-X
4.            Souza CDF, Paiva JPS, Silva LF, Leal TC, Magalhães MAFM. Trends in tuberculosis mortality in Brazil (1990-2015): joinpoint analysis. J Bras Pneumol. 2019;45(2):e20180393. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20180393
5.            Dhamnetiya D, Patel P, Jha RP, Shri N, Singh M, Bhattacharyya K. Trends in incidence and mortality of tuberculosis in India over past three decades: a joinpoint and age-period-cohort analysis. BMC Pulm Med. 2021;21(1):375. http://doi.org/10.1186/s12890-021-01740-y
6.            Plata-Casas L, González-Támara L, Cala-Vitery F. Tuberculosis Mortality in Children under Fifteen Years of Age: Epidemiological Situation in Colombia, 2010-2018. Trop Med Infect Dis. 2022;7(7):117. http://doi.org/10.3390/tropicalmed7070117
7.            Dragomirescu I, Llorca J, Gómez-Acebo I, Dierssen-Sotos T. A join point regression analysis of trends in mortality due to osteoporosis in Spain. Sci Rep. 2019;9(1):4264. http://doi.org/10.1038/s41598-019-40806-0
8.            Snow KJ, Sismanidis C, Denholm J, Sawyer SM, Graham SM. The incidence of tuberculosis among adolescents and young adults: a global estimate. Eur Respir J. 2018;51(2):1702352. http://doi.org/10.1183/13993003.02352-2017
9.            Snow KJ, Cruz AT, Seddon JA, Ferrand RA, Chiang SS, Hughes JA, et al. Adolescent tuberculosis [published correction appears in Lancet Child Adolesc Health. 2019 Nov 27;:]. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(1):68-79. http://doi.org/10.1016/S2352-4642(19)30337-2
10.          Lima MD, Martins-Melo FR, Heukelbach J, Alencar CH, Boigny RN, Ramos AN Júnior. Mortality related to tuberculosis-HIV/AIDS co-infection in Brazil, 2000-2011: epide-miological patterns and time trends. Cad Saude Publica. 2016;32(10):e00026715. http://doi.org/10.1590/0102-311X00026715

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