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ISSN (on-line): 1806-3756

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Artigo Especial

Diretrizes brasileiras para o tratamento farmacológico pulmonar na fibrose cística. Documento oficial da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia

Brazilian guidelines for the pharmacological treatment of the pulmonary symptoms of cystic fibrosis. Official document of the Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT, Brazilian Thoracic Association)

Rodrigo Abensur Athanazio1, Suzana Erico Tanni8, Juliana Ferreira1, Paulo de Tarso Roth Dalcin3,4, Marcelo B de Fuccio5, Concetta Esposito6, Mariane Gonçalves Martynychen Canan7, Liana Sousa Coelho8, Mônica de Cássia Firmida9, Marina Buarque de Almeida2, Paulo José Cauduro Marostica10, Luciana de Freitas Velloso Monte11,12, Edna Lúcia Souza13, Leonardo Araujo Pinto14, Samia Zahi Rached1, Verônica Stasiak Bednarczuk de Oliveira7,15, Carlos Antonio Riedi7, Luiz Vicente Ribeiro Ferreira da Silva Filho2

DOI: https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20230040

ABSTRACT

Cystic fibrosis (CF) is a genetic disease that results in dysfunction of the CF transmembrane conductance regulator (CFTR) protein, which is a chloride and bicarbonate channel expressed in the apical portion of epithelial cells of various organs. Dysfunction of that protein results in diverse clinical manifestations, primarily involving the respiratory and gastrointestinal systems, impairing quality of life and reducing life expectancy. Although CF is still an incurable pathology, the therapeutic and prognostic perspectives are now totally different and much more favorable. The purpose of these guidelines is to define evidence-based recommendations regarding the use of pharmacological agents in the treatment of the pulmonary symptoms of CF in Brazil. Questions in the Patients of interest, Intervention to be studied, Comparison of interventions, and Outcome of interest (PICO) format were employed to address aspects related to the use of modulators of this protein (ivacaftor, lumacaftor+ivacaftor, and tezacaftor+ivacaftor), use of dornase alfa, eradication therapy and chronic suppression of Pseudomonas aeruginosa, and eradication of methicillin-resistant Staphylococcus aureus and Burkholderia cepacia complex. To formulate the PICO questions, a group of Brazilian specialists was assembled and a systematic review was carried out on the themes, with meta-analysis when applicable. The results obtained were analyzed in terms of the strength of the evidence compiled, the recommendations being devised by employing the GRADE approach. We believe that these guidelines represent a major advance to be incorporated into the approach to patients with CF, mainly aiming to favor the management of the disease, and could become an auxiliary tool in the definition of public policies related to CF.

Keywords: Cystic fibrosis; GRADE approach; Cystic fibrosis/drug treatment; Clinical practice guide.

RESUMO

A fibrose cística (FC) é uma doença genética que resulta em disfunção da proteína reguladora de condutância transmembrana da FC (CFTR), que é um canal de cloro e bicarbonato expresso na porção apical de células epiteliais de diversos órgãos. A disfunção dessa proteína resulta em manifestações clínicas diversas, envolvendo primariamente os sistemas respiratório e gastrointestinal com redução da qualidade e expectativa de vida. A FC ainda é uma patologia incurável, porém o horizonte terapêutico e prognóstico é hoje totalmente distinto e muito mais favorável. O objetivo destas diretrizes foi definir recomendações brasileiras baseadas em evidências em relação ao emprego de agentes farmacológicos no tratamento pulmonar da FC. As perguntas PICO (acrônimo baseado em perguntas referentes aos Pacientes de interesse, Intervenção a ser estudada, Comparação da intervenção e Outcome [desfecho] de interesse) abordaram aspectos relativos ao uso de moduladores de CFTR (ivacaftor, lumacaftor + ivacaftor e tezacaftor + ivacaftor), uso de dornase alfa, terapia de erradicação e supressão crônica de Pseudomonas aeruginosa, e erradicação de Staphylococcus aureus resistente a meticilina e do complexo Burkholderia cepacia. Para a formulação das perguntas, um grupo de especialistas brasileiros foi reunido e realizou-se uma revisão sistemática sobre os temas, com meta-análise quando aplicável. Os resultados encontrados foram analisados quanto à força das evidências compiladas, sendo concebidas recomendações seguindo a metodologia GRADE. Os autores acreditam que o presente documento represente um importante avanço a ser incorporado na abordagem de pacientes com FC, objetivando principalmente favorecer seu manejo, podendo se tornar uma ferramenta auxiliar na definição de políticas públicas relacionadas à FC.

Palavras-chave: Fibrose cística; Abordagem GRADE; Fibrose cística/tratamento farmacológico; Guia de prática clínica.

 
INTRODUÇÃO
 
A fibrose cística (FC) é uma doença genética que resulta em disfunção da proteína cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, reguladora de condutância transmembrana da FC), que é um canal de cloro e bicarbonato expresso na porção apical de células epiteliais em diversos órgãos do corpo humano.(1) A disfunção da proteína CFTR resulta em manifestações multissistêmicas com redução da qualidade e expectativa de vida.(2)
 
A FC ainda é uma patologia incurável, mas o horizonte terapêutico é atualmente mais favorável por conta da descoberta de moduladores da proteína CFTR.(3,4) Historicamente, o tratamento dos indivíduos com FC foi desenvolvido para suprir deficiências ou modificar aspectos básicos da fisiopatologia da doença.(5-8)
 
Com o surgimento dos moduladores da proteína CFTR, revisões sistemáticas sobre as evidências de seus benefícios em desfechos de saúde para pessoas com FC foram publicadas.(3,4,9,10) No início da elaboração das presentes diretrizes, os moduladores da proteína CFTR com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) eram os medicamentos ivacaftor(11) e as associações lumacaftor + ivacaftor(12) e tezacaftor + ivacaftor.(13,14) No final de 2020, o ivacaftor foi incorporado ao Sistema Único de Saúde para uso em indivíduos com FC com idade igual ou superior a 6 anos e com variantes genéticas de regulação (gating). Em 2022, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou a terapia tripla (elexacaftor + tezacaftor + ivacaftor), que se mostrou altamente efetiva para indivíduos com FC portadores da variante genética F508del, mesmo que em heterozigose.(15,16) Devido à aprovação recente dessa associação, sua avaliação não foi incorporada no escopo destas diretrizes.
 
Quanto aos tratamentos clássicos, a dornase alfa(17) é um dos tratamentos incorporados ao Sistema Único de Saúde há mais tempo e que ainda suscita dúvidas quanto ao seu real impacto em desfechos relevantes, como mortalidade e frequência de exacerbações pulmonares.(18-20)
 
Estratégias de manejo das infecções respiratórias na FC são bastante heterogêneas. Uma avaliação das evidências que suportam os esquemas de erradicação de patógenos como Pseudomonas aeruginosa,(21) methicillin-resistant Staphylococcus aureus (MRSA, Staphylococcus aureus resistente à meticilina)(22) e cepas do complexo Burkholderia cepacia(23) poderia trazer um posicionamento mais claro sobre os riscos e benefícios desses tratamentos. Por fim, outra prática comum no tratamento de pessoas com FC é a terapia de supressão da infecção crônica por P. aeruginosa com antibioticoterapia inalatória. Diante do impacto desse tratamento, que impõe longos períodos de nebulização na rotina dos indivíduos,(24) o tema foi também incluído no presente trabalho.
 
Desse modo, este artigo especial teve o objetivo de realizar uma revisão sistemática e meta-análise de dados da literatura envolvendo aspectos do tratamento de indivíduos com FC no que concerne ao uso de moduladores da proteína CFTR, dornase alfa e estratégias de erradicação e supressão de patógenos comumente associados a infecções respiratórias nesses indivíduos.
 
MÉTODOS
 
As etapas do desenvolvimento das diretrizes seguiram o modelo aprovado e proposto pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, utilizando-se a metodologia Grading of Recommendations Assessment, Development, and Evaluation (GRADE)(25) e perguntas no formato designado PICO (Pacientes de interesse, Intervenção a ser estudada, Comparação da intervenção e Outcome [desfecho] de interesse).(26) Realizou-se uma reunião virtual em 14/05/2019 para a aprovação da metodologia empregada entre os coordenadores (dois especialistas em FC e dois metodologistas), um paciente e um comitê de experts. Os especialistas formularam perguntas sobre o tratamento farmacológico de pacientes portadores de FC no formato PICO. Em seguida, realizou-se uma votação para a seleção das oito perguntas mais relevantes. Os desfechos de interesse para cada pergunta foram definidos a priori e classificados como críticos ou importantes (Quadro 1).
 

 
A busca de artigos e a realização da meta-análise foram realizadas por uma equipe de metodologistas experientes, contratados para a realização destas diretrizes. O projeto foi registrado na plataforma International Prospective Register of Systematic Reviews (PROSPERO; Protocolo CRD42020173901). Os bancos de dados MEDLINE e EMBASE foram utilizados para a realização da busca. Foram incluídos na pesquisa ensaios clínicos, estudos de caso-controle e estudos de coorte, com a utilização de palavras-chave pré-estabelecidas pelos coordenadores especialistas, sem restrição de data ou idioma (Quadro S1).
 
Subsequentemente realizou-se uma avaliação independente dos artigos através dos títulos e resumos. A etapa seguinte avaliou a inclusão dos artigos pela análise qualitativa dos mesmos em sua íntegra por duas metodologistas separadamente; essa seleção foi posteriormente validada pelos coordenadores especialistas. Os motivos de inclusão ou exclusão foram registrados e estão apresentados no material suplementar (Figuras S1 a S8).
 
Quando apropriado, dados sobre as intervenções farmacológicas foram agrupados, e meta-análises foram realizadas, de maneira independente, pela equipe de metodologia contratada. Para cada uma das oito perguntas PICO, a qualidade das evidências dos estudos incluídos nas meta-análises foi avaliada conforme a metodologia GRADE, através de tabelas de evidência, empregando-se o programa GRADEpro Guideline Development Tool (McMaster University, Hamilton, ON, Canadá).
 
A qualidade da evidência depende do delineamento, da implementação dos estudos e dos riscos de viés e pode ser classificada em alta, moderada, baixa ou muito baixa (Quadros 2 e 3).(25)
 





 
Em dezembro de 2021, o grupo de trabalho reuniu-se para a revisão das evidências e realização de recomendações para cada pergunta conforme a metodologia GRADE. As recomendações foram classificadas em fortes ou condicionais, conforme a certeza sobre a força e qualidade de evidência. Usamos o termo “recomendamos” para recomendações fortes e “sugerimos” para recomendações condicionais. O Quadro 4 mostra interpretações sugeridas dessas recomendações (Tabelas S1 a S8).(26,27)
 

 
Pergunta 1. Devemos recomendar tratamento com ivacaftor em pacientes com FC portadores de mutações no gene CFTR de regulação (classe 3) ou condutividade (classe 4)?
 
O ivacaftor é um modulador da proteína CFTR. Esse fármaco atua como potencializador da CFTR, objetivando tratar a disfunção subjacente a esta alteração genética. Sua ação regula a abertura do canal de cloro presente na membrana celular, restaurando a reologia do muco nas vias aéreas.
 
Em 2012, a agência americana Food and Drug Administration aprovou o uso de ivacaftor para pacientes com FC acima de 12 anos de idade.(11) Trata-se do primeiro fármaco aprovado para FC cuja ação terapêutica é o problema básico da doença, caracterizada pela disfunção da proteína CFTR. Em seguida, diversos ensaios clínicos foram realizados, possibilitando a expansão do uso do medicamento para pacientes a partir de 6 anos de idade.
 
Evidências
 
Os estudos analisados sobre o uso de ivacaftor para diferentes desfechos totalizaram 28 publicações (Figura S1 e Quadro S2).(11,28-54) Dos 28 estudos incluídos na revisão, 8 foram ensaios clínicos randomizados (ECR). (11,29,32-34,36,44,45) Embora nem todos tenham investigado os mesmos conjuntos de desfechos, na sua abrangência, os artigos demonstraram efeito terapêutico benéfico do ivacaftor nos pacientes portadores de mutações de regulação (classe 3) ou condutividade (classe 4).
 
Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S1). O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 1 está listado nas Tabelas S1A e S1B.
 
Em 2020, Volkova et al.(55) avaliaram a progressão da doença (estudo de vida real) em pacientes tratados com ivacaftor por 5 anos. Foram avaliados pacientes incluídos em registros de FC nos EUA e no Reino Unido, os quais mantêm alto grau de integridade de dados. Foram analisados 635 casos vs. 1.875 controles no registro americano e 247 casos vs. 1.230 controles no registro britânico. Os autores observaram que o grupo ivacaftor apresentou melhor função pulmonar, melhor estado nutricional e menor frequência de exacerbações e de hospitalizações ao final de 5 anos de seguimento quando comparados a seus valores basais ou ao grupo controle (terapia padrão sem ivacaftor).(55)
 
Recomendação

 
 
Comentários
 
Os resultados nos estudos de vida real do uso de ivacaftor são semelhantes aos observados nos estudos clínicos, favorecendo seu efeito positivo como droga modificadora da progressão natural da doença. A muito baixa qualidade da evidência encontrada decorre da alta heterogeneidade dos estudos avaliados, uma vez que o presente método de revisão sistemática incluiu a análise tanto de ensaios clínicos como de estudos observacionais. Os estudos avaliados incluíram somente pacientes com idade ≥ 6 anos, não sendo possível extrapolar a recomendação para a faixa etária mais precoce.
 
Pergunta 2. Devemos recomendar o tratamento com a associação lumacaftor + ivacaftor em pacientes com FC homozigotos F508del?
 
O lumacaftor e o ivacaftor são moduladores da proteína CFTR. O lumacaftor é um corretor da CFTR, que atua no processamento da proteína, corrigindo seu formato, com consequente aumento da sua quantidade na superfície da membrana celular.(4)
 
A terapia combinada foi avaliada em pacientes fibrocísticos com 6 anos ou mais, homozigotos para a mutação de classe II F508del. Os resultados indicaram uma redução no número de exacerbações pulmonares, aumento discreto do VEF1, melhora no estado nutricional e na qualidade de vida e redução dos níveis de cloreto no suor.(12,56-60)
 
A associação de lumacaftor + ivacaftor foi aprovada por diversas agências internacionais, incluindo a ANVISA, frente aos benefícios apresentados. Além disso, a associação demonstrou um perfil aceitável de segurança, com a maioria dos pacientes completando o regime terapêutico prescrito e tendo baixa incidência de eventos adversos relevantes.(12,56,57)
 
Evidências
 
Utilizando-se da metodologia descrita, foram selecionados 15 estudos, que foram posteriormente incluídos para leitura, revisão e síntese das evidências (Figura S2 e Quadro S3).(12,56-69)
 
Dos 15 estudos selecionados, apenas 2 foram ECR.(12,57) Embora nem todos tenham investigado os mesmos conjuntos de desfechos, na sua abrangência, os artigos demonstraram efeito terapêutico benéfico da combinação lumacaftor + ivacaftor nos pacientes homozigotos para F508del.
 
Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S2). O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 2 está listado nas Tabelas S2A e S2B.
 
Recomendação

 
 
Comentários
 
A combinação de um fármaco corretor com outro potencializador da CFTR pode beneficiar pacientes homozigotos para F508del, representando um diferencial no tratamento de aproximadamente 45% dos indivíduos portadores de FC e dessa mutação. Entretanto, a presente revisão sistemática não foi capaz de encontrar resultados significativos em relação aos desfechos clínicos considerados críticos. Os achados positivos encontrados nos desfechos considerados importantes foram apenas marginais. Devido à qualidade de evidência muito baixa para a maior parte dos desfechos avaliados, alguns pacientes podem se beneficiar do tratamento; porém, não sugerimos o uso da associação de lumacaftor + ivacaftor para o tratamento de pacientes com FC e presença de mutação F508del em homozigose. É importante ressaltar que novas classes de moduladores como tezacaftor + ivacaftor(13) e, mais recentemente, a associação tripla (elexacaftor + tezacaftor + ivacaftor)(15) foram aprovados e apresentaram um perfil melhor de eficácia e segurança para essa população.
 
Pergunta 3. Devemos recomendar o tratamento com a associação tezacaftor + ivacaftor em pacientes com FC homozigotos para F508del ou heterozigotos para F508del e com mutações de função residual?
 
O tezacaftor é uma molécula corretora da proteína CFTR que se liga a essa proteína melhorando seu processamento e trânsito através da célula até a membrana celular.(9)
 
A associação tezacaftor + ivacaftor foi avaliada em estudos de fase 3 envolvendo pacientes com FC acima de 12 anos homozigotos para a mutação F508del(13) bem como para pacientes heterozigotos F508del mais mutação de função residual.(14) Naqueles estudos, a associação tezacaftor + ivacaftor demonstrou melhora significativa na função pulmonar, redução no número de exacerbações e ganho nutricional com adequado perfil de segurança. Resultados semelhantes foram verificados em pacientes entre 6 e 11 anos.(70-72) Dessa forma, a associação tezacaftor + ivacaftor foi aprovada para uso em pacientes em diversos países, incluindo no Brasil.
 
Evidências
 
Foram selecionados 5 artigos(13,14,70-72) a partir da metodologia descrita (Figura S3 e Quadro S4), sendo 4 ECR e 1 estudo observacional. Todos avaliaram mais de um desfecho, entre eles IMC, qualidade de vida, eventos adversos, ocorrência de exacerbações, função pulmonar e mortalidade.(13,14,70-72)
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 3 está listado na Tabela S3. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S3).
 
Recomendação

 
 
Comentários
 
O uso da associação tezacaftor +ivacaftor foi avaliado em pacientes portadores de mutações F508del em homozigose e em portadores heterozigotos para F508del mais mutação de função residual em indivíduos a partir de 6 anos. O principal efeito do fármaco foi encontrado na função pulmonar. O ganho de VEF1, apesar de modesto, quando considerado em contexto de doença que cursa com queda progressiva da função pulmonar, parece significativo. É importante ressaltar que os benefícios clínicos obtidos em pacientes portadores de função residual parecem superiores aos encontrados em pacientes homozigotos F508del. Não houve diferença na ocorrência de eventos adversos entre os grupos controle e tezacaftor + ivacaftor em todos os estudos avaliados. A maioria dos eventos adversos verificados foi leve e não levou a descontinuação da associação. Além disso, muitos dos eventos encontrados podem estar relacionados à própria doença (tais como aumento da secreção pulmonar e aumento da tosse), evidenciando o perfil adequado de segurança do medicamento.(13,14,70-72)
 
Pergunta 4. Em indivíduos com FC, devemos recomendar a erradicação da infecção por P. aeruginosa?
 
As infecções do trato respiratório são frequentes nos indivíduos com FC, havendo maior susceptibilidade para a infecção por alguns micro-organismos, dentre os quais P. aeruginosa. A infecção por esse patógeno é considerada um grande preditor de morbidade e mortalidade da doença(73) e de perda da função pulmonar acentuada.(74) Desde a década de 1990, os centros de referência de FC têm utilizado esquemas de erradicação precoce desse micro-organismo, objetivando retardar a progressão para a infecção crônica e seus desfechos desfavoráveis.
 
Evidências
 
Empregando-se a metodologia descrita, foram selecionados 17 artigos,(75-91) dos quais 10 eram estudos observacionais(75-80,82,83,86,87) e 7 ECR,(81,84,85,88-91) realizados em 1980-2019 e publicados em 1991-2020. O número de indivíduos incluídos nos estudos variou de 11 a 304, sendo que 12 estudos tiveram um número amostral inferior a 200 (Figura S4 e Quadro S5).
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 4 está listado na Tabela S4. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S4)
 
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Comentários
 
É bem estabelecida a associação entre a infecção por P. aeruginosa e desfechos desfavoráveis na FC. Além disso, a terapia de erradicação já se tornou uma prática incorporada à rotina dos centros de referência, dificultando a realização de novos estudos no assunto. A revisão da literatura possibilitou incluir um número limitado de estudos, sendo a maioria de caráter observacional e, no geral, com pequeno número de indivíduos incluídos. Tais características podem induzir ao achado de resultados inconsistentes, impossibilitando a criação de uma recomendação apropriada sobre o tema. Apesar de ser uma prática recomendada por diversas diretrizes internacionais e nacionais, novos estudos sobre o tema são necessários para a comprovação de eficácia e segurança da terapia de erradicação desse patógeno, sobretudo na era de uso dos moduladores da CFTR.
 
Pergunta 5. Devemos recomendar tratamento supressivo com antimicrobianos inalatórios em pacientes com FC e infecção crônica por P. aeruginosa?
 
Por mecanismos complexos, P. aeruginosa adapta-se e pode permanecer nas vias aéreas dos pacientes com FC por longos períodos. A cronicidade da infecção na FC é definida como a detecção do patógeno em mais de 50% das amostras de secreção respiratória em um período de 12 meses.(92) A infecção crônica por P. aeruginosa pode atingir até 60% dos pacientes na vida adulta e está associada a progressão da doença pulmonar e maior mortalidade.(21,93,94) Os antimicrobianos inalatórios são amplamente utilizados para o tratamento supressivo de P. aeruginosa nos pacientes com infecção crônica e visam reduzir as consequências da presença do patógeno nas vias aéreas. As opções de medicamentos inalatórios para o tratamento supressivo incluem, classicamente, colistimetato, tobramicina e, mais recentemente, aztreonam.(93)
 
Evidências
 
Em função da metodologia utilizada, 25 estudos foram selecionados.(94-118) Cinco foram estudos observacionais(101-103,109,117) e os demais classificados como ECR, realizados entre 1995 e 2008. Nove estudos apresentaram amostras superiores a 200, dos quais 2 deles incluíram mais de 500 indivíduos (Figura S5 e Quadro S6).
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 5 está listado na Tabela S5. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S5).
 
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Comentários
 
Ainda que nem todos os estudos tenham analisado exatamente os mesmos conjuntos de desfechos, na sua totalidade, eles apontam a favor do tratamento inalatório de pacientes com colonização crônica por P. aeruginosa em relação a melhora funcional, melhora da qualidade de vida e menor mortalidade. Vale ressaltar que, apesar de possíveis benefícios, há heterogeneidade nos estudos, o que resulta numa baixa qualidade de evidência.
 
Pergunta 6. Devemos recomendar tratamento antimicrobiano de erradicação em pacientes com FC e colonização das vias aéreas por MRSA?
 
A infecção crônica por MRSA está associada a piores desfechos clínicos em pacientes com FC.(119) Existem diferentes esquemas antimicrobianos para erradicação desse patógeno, incluindo combinações de medicamentos orais, tópicos e inalatórios. Existe também grande variabilidade quanto ao tempo de tratamento, e alguns advogam que o tratamento combinado seria mais efetivo que a monoterapia.(120,121) Entretanto, ainda não existe consenso na literatura e se questiona se existem evidências científicas robustas de que a erradicação de MRSA seja benéfica aos pacientes com FC.(122,123)
 
Evidências
 
De acordo com a metodologia empregada (Figura S6 e Quadro S7), foram selecionados 8 estudos.(120-127) Desses, apenas 2 são ECR(123,126) e os outros 6 são estudos observacionais.(120-122,124,125,127)
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 6 está listado nas Tabelas S6A e S6B. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S6).
 
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Comentários
 
Todos os estudos avaliaram a taxa de erradicação, mas usando protocolos de tratamento diferentes, assim como distintas formas de avaliar a erradicação em cada estudo (curto vs. longo prazo). Todos os estudos avaliados incluíram amostras com menos de 70 indivíduos. Existe uma chance de que, com novos estudos e principalmente com o aumento do número de sujeitos investigados, ocorra uma mudança no grau de confiança dessa recomendação.
 
Pergunta 7. Devemos recomendar dornase alfa nebulizada para pacientes com FC com idade ≥ 6 anos?
 
Nos pacientes com FC, DNA extracelular proveniente de leucócitos é constantemente liberado nas vias aéreas que se acumulam nas secreções pulmonares em decorrência da inflamação e infecção crônicas.(18) Consequentemente, observa-se aumento da viscosidade e tenacidade do muco. A dornase alfa é uma enzima capaz de clivar o DNA extracelular contido no muco, reduzir sua viscosidade e promover o aumento do clareamento de secreções.(128)
 
A dornase alfa é administrada de forma inalatória, na dose habitual de 2,5 mg uma vez ao dia, devendo ser utilizada conjuntamente com outras técnicas de clareamento das vias aéreas.(17,128)
 
Nos estudos de fase I e II, o uso da dornase alfa nebulizada em pacientes com FC mostrou ser seguro e levou ao aumento do VEF1 no curto prazo, associado à melhora de sintomas e de qualidade de vida.(129,130) Posteriormente, foi demonstrada manutenção dos benefícios no longo prazo com melhora sustentada do VEF1, redução do risco de exacerbações e bom perfil de segurança.(128)
 
Evidências
 
Foram 32 estudos selecionados(17,131-161), sendo 18 ECR(17,131-135,140-142,144,145,149,151-154,159,160) que compararam o uso da dornase alfa a placebo e 14 estudos observacionais.(136-139,143,146-148,150,155-158,161) (Ver Figura S7 e Quadro S8)
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 7 está listado nas Tabelas S7A e S7B. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S7).
 
Recomendação

 
 
Comentários
 
A diferença nas taxas de mortalidade não pôde ser comprovada, pois poucos pacientes morreram nos grupos intervenção e placebo, e as diferenças não foram, portanto, significativas. Dois ECR avaliaram efeitos adversos,(17,149) não havendo diferença significativa na frequência de eventos entre os dois grupos. Um ECR e 2 estudos observacionais,(131,155,156) que avaliaram qualidade de vida, demonstraram melhora no grupo de tratamento.
 
Nove ECR(17,131,141,142,144,149,152,154,160) avaliados conjuntamente demonstraram um valor de VEF1 5% mais elevado nos pacientes que receberam alfa dornase do que no grupo placebo. Embora seja uma melhora modesta, o VEF1 é um proxy de mortalidade em estudos populacionais. Ainda, 2 ECR(17,152) demonstraram redução de 7% nas exacerbações no grupo intervenção em relação ao grupo placebo. Esse desfecho é importante, pois a redução das exacerbações se relaciona com desfechos favoráveis de função pulmonar e, de forma indireta, de mortalidade.
 
A pesquisa de referências para essas diretrizes não incluiu estudos com crianças menores de 6 anos de idade, não sendo possível extrapolar a recomendação para a faixa etária mais precoce.
 
Pergunta 8. Devemos recomendar tratamento antimicrobiano de erradicação em pacientes com FC e colonização das vias aéreas por cepas do complexo B. cepacia?
 
O complexo B. cepacia agrupa 22 espécies,(162) sendo B. multivorans e B. cenocepacia as mais comuns em FC.
 
O quadro clínico é muito variável, caracterizado desde infecção crônica oligossintomática até quadros graves cursando com pneumonia necrosante, insuficiência respiratória e sepse (síndrome cepacia).(163) O complexo B. cepacia tem um perfil de resistência bacteriana peculiar, o que torna difícil a escolha de tratamento antibiótico, sendo comumente sugerida a associação de drogas antimicrobianas, preferencialmente guiada por antibiograma.(164)
 
Evidências
 
De acordo com a metodologia empregada (Figura S8 e Quadro S9), 3 estudos foram incluídos ao final do processo de revisão.(23,165,166) Apenas 1 estudo foi caracterizado como ECR.(165)
 
O resumo da qualidade das evidências dos artigos selecionados para esta questão 8 está listado nas Tabelas S8A e S8B. Uma descrição detalhada dos achados pode ser encontrada no material suplementar (Pergunta S8).
 
Recomendação

 
 
Comentários
 
Nenhum dos estudos selecionados mostrou benefícios do tratamento quando avaliados tantos os desfechos críticos considerados importantes na metodologia destas diretrizes. Foram encontrados poucos estudos na literatura sobre o tema, sendo a maioria de baixa qualidade metodológica e grande heterogeneidade entre si. Os regimes de erradicação descritos não eram padronizados. O aumento de eventos adversos encontrados com o uso de aztreonam inalatório não pode ser extrapolado para outros regimes terapêuticos, ainda mais por esse não ser um antibiótico comumente recomendado para esse tipo de infecção. Diante disso, o comitê destas diretrizes julga não ser possível realizar uma recomendação nem a favor nem contra essa terapia devido à escassez de informações publicadas. Novos estudos são necessários para melhor avaliação dessa questão.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Um resumo com as recomendações para o tratamento farmacológico da doença respiratória na FC está apresentado no Quadro 5.
 

 
Cabe ao prescritor identificar e reconhecer que diferentes tratamentos podem ser adequados para um mesmo paciente ou para grupos diferentes, e que a ele compete ajudá-los e aos seus familiares a tomar decisões consistentes e bem fundamentadas, coerentes com a força das recomendações e a qualidade das evidências existentes. Não foram consideradas a análise de custos e os aspectos de farmacoeconomia nestas recomendações.
 
Embora ainda não haja um fármaco com capacidade curativa na FC, as presentes diretrizes sugerem diversas intervenções com potencial benéfico para o tratamento da doença. Algumas drogas como dornase alfa e estratégias de controle da infecção crônica por P. aeruginosa já estão aprovadas há mais de uma década e são consideradas como terapia padrão no manejo desses indivíduos. Entretanto, essas terapias atuam no controle das consequências da doença como muco espesso e exacerbações infecciosas de repetição. Mais recentemente, uma nova classe de medicamentos, os moduladores da CFTR, inicia uma nova fase no tratamento da FC por agir na causa base da doença.(9) Ganhos substanciais de função pulmonar e redução nas taxas de exacerbação foram encontrados em pacientes sob uso de ivacaftor com mutações classe 3(11) e de tezacaftor + ivacaftor naqueles com função residual. (14) Entretanto, apesar de benefícios estatisticamente significantes, esses resultados não foram igualmente encontrados em portadores de FC com mutação F508del em homozigose sob uso de lumacaftor + ivacaftor(12) ou tezacaftor + ivacaftor.(13) Esses dados apontam a necessidade da adequada avaliação dos benefícios de cada tratamento de acordo com a população avaliada. A terapia com moduladores da CFTR pode ser considerada como uma terapia alvo e escolhida conforme a ação dos diferentes fármacos para grupos específicos de mutações do CFTR. Mais recentemente, uma nova combinação tripla de moduladores da CFTR (elexacaftor + tezacaftor + ivacaftor) parece ser uma opção eficaz e segura para pacientes com a presença de pelo menos um alelo F508del.(15,16)
 
Frente aos diversos avanços encontrados no manejo da FC nos últimos anos, recomenda-se que mesmo tratamentos comprovadamente eficazes, como dornase alfa e terapia de supressão crônica de P. aeruginosa, sejam reavaliados futuramente conforme maior acesso ao uso dos moduladores da CFTR em pacientes elegíveis.
 
Sobre as outras intervenções avaliadas, o painel de especialistas não foi capaz de emitir uma recomendação baseada em evidências pela baixa qualidade das informações obtidas para a erradicação de P. aeruginosa, MRSA e complexo B. cepacia. Mais estudos sobre o tema são necessários para uma recomendação formal. Entretanto, o médico clínico deve avaliar as particularidades de cada paciente e reconhecer possíveis benefícios dessas terapias em casos selecionados.
 
Deve ser enfatizado que estas diretrizes buscaram responder oito das principais intervenções farmacológicas relacionadas ao tratamento respiratório da FC. Outras terapias, como nebulização com salina hipertônica e uso crônico de macrolídeos, não foram avaliadas neste documento, o que não significa que não apresentem benefício clínico ou que não possam ser usadas conforme critérios de elegibilidade próprios. Cuidados não farmacológicos também são essenciais no manejo da FC, incluindo vacinação, atividade física, fisioterapia respiratória e reabilitação pulmonar. Por fim, por se tratar de uma doença multissistêmica, o paciente deve ser cuidado de forma multidisciplinar, envolvendo aspectos gastrointestinais, endocrinológicos e otorrinolaringológicos não contemplados no escopo destas diretrizes.(7)
 
É relevante esclarecer que a qualidade muito baixa de evidência de algumas recomendações não significa que elas não devam ser consideradas ou implementadas. Nestas diretrizes, optou-se pela inclusão tanto de ECR como de estudos observacionais com o intuito de mais bem avaliar o efeito de algumas terapias aprovadas há muitos anos para FC. Por um lado, essa estratégia permite a avaliação de uma ampla amostra de pacientes com grande validade externa. Por outro lado, aumenta a incerteza dos resultados por vieses inerentes aos diversos tipos de estudos. É importante ressaltar que o achado consistente de resultados tanto em ECR como em estudos observacionais favorece a aplicabilidade clínica dessas intervenções para uma maior proporção de pacientes com FC. Além disso, as presentes recomendações estão em concordância com outras diretrizes internacionais.(8)
 
Acreditamos que o documento em questão represente uma importante ferramenta a ser incorporada na abordagem de pacientes com FC, objetivando principalmente favorecer o seu manejo, bem como auxiliando a definição de políticas públicas relacionadas à doença.
 
AGRADECIMENTOS
 
Agradecemos o apoio metodológico e estatístico da Dra. Ana Menezes e Dr. Fernando Wehrmeister durante o desenvolvimento deste trabalho.
 
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
 
Todos os autores participaram ativamente no processo de elaboração destas diretrizes e estiveram presentes na elaboração das perguntas, escolha dos desfechos avaliados e revisão dos resultados obtidos. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
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