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Cartas ao Editor

Fisiopatologia da redução da CVF com obstrução ao fluxo aéreo na espirometria: desempenho de dois modelos matemáticos na prática clínica

Pathophysiology of reduced forced vital capacity with airflow obstruction on spirometry: performance of two mathematical models in clinical practice

Bruno de Moraes Santos Wong1, Andria Machado da Silva2, Rosemeri Maurici3, José Tavares de Melo Júnior1

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220377

AO EDITOR,
 
A espirometria apresenta limitações quando se trata de obstrução ao fluxo aéreo (OFA) associada à redução da CVF, situação comum na qual a causa dessa redução precisa ser esclarecida. A CVF pode estar reduzida por restrição ventilatória associada, caracterizando padrão misto (PM), ou por aprisionamento aéreo com aumento do VR, caracterizando OFA pura (OFAP).(1)
 
Nesse contexto, recomenda-se que os volumes pulmonares (CPT e VR) sejam medidos pelos métodos disponíveis.(1-3) O problema desses métodos é que são caros e de difícil acesso pelo sistema público de saúde. Para aferir a causa da redução da CVF na presença de OFA apenas com base em dados espirométricos, foram criados vários modelos matemáticos,(4-7) sendo que os primeiros foram o de Pereira et al.(4) em 1991 e o de Lefante et al.(5) em 1996, aqui denominados modelo de Pereira e modelo de Lefante.
 
Pereira et al.(4) sugeriram que, na presença de OFA com redução da CVF, a diferença entre a CVF em porcentagem do previsto (CVF%) e o VEF1 em porcentagem do previsto (FEV1%), ou seja, %, deve ser calculada na etapa pré-broncodilatador (pré-BD). Se % for igual ou superior a 25%, a causa da redução da CVF é a hiperinsuflação e se trata de um caso de OFAP. Se % for igual ou inferior a 12%, pode-se inferir PM. Quando % situa-se entre 12% e 25%, a única opção disponível é a medida de CPT.(2,4)
 
Lefante et al.(5) propuseram outra solução: na presença de OFA com VEF1/CVF igual ou inferior a 0,7, a CVF% pode ser ajustada com base no grau de obstrução (VEF1/CVF) observado, por meio da seguinte fórmula: CVF% ajustada = CVF% observada + 76 – (105 × VEF1/CVF). Se a CVF% ajustada for igual ou superior ao limite inferior de normalidade (LIN), trata-se de um caso de OFAP. Se a CVF% ajustada ainda estiver abaixo do LIN, trata-se provavelmente de um caso de PM.
 
Nosso objetivo foi avaliar o desempenho desses dois modelos matemáticos por meio das medidas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP), valor preditivo negativo (VPN), razão de verossimilhança positiva (RV+) e razão de verossimilhança negativa (RV−) na determinação da causa da redução da CVF em pacientes com OFA, utilizando os valores pletismográficos de CPT como padrão ouro.
 
Trata-se de um estudo transversal analítico com dados espirométricos e pletismográficos. Todos os exames foram realizados no Laboratório de Função Pulmonar do Núcleo de Pesquisa em Asma e Inflamação das Vias Aéreas (NUPAIVA) do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC) com equipamentos de teste automatizados (Vmax Autobox V62J; SensorMedics, Yorba Linda, CA, EUA). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HU-UFSC (Protocolo n. 4.459.996).
 
A coleta de dados estendeu-se de julho de 2018 a maio de 2022. Os critérios de inclusão foram os seguintes: dados espirométricos e pletismográficos de cada paciente que foi submetido aos dois exames na mesma ocasião no Laboratório de Função Pulmonar do NUPAIVA; pré-BD VEF1/CVF ≤ 0,7; e redução da CVF pré-BD (abaixo do LIN).
 
Os exames selecionados foram classificados com base nos modelos de Pereira e de Lefante, e comparados com o padrão ouro (ou seja, valores pletismográficos de CPT), como PM (CPT < LIN) ou OFAP (CPT ≥ LIN), sendo o primeiro definido como teste positivo e esta última, como teste negativo.
Foi realizada análise estatística descritiva para as variáveis sexo, altura e peso dos pacientes, bem como para VEF1% pré-BD, CVF% pré-BD, VEF1/CVF pré-BD, CPT%, % e CVF% ajustada (Tabela 1).
 

 

 
Os dados contínuos foram analisados pelo teste de Shapiro-Wilk e expressos em média ± dp ou mediana ± IIQ. As diferenças entre os grupos foram avaliadas por meio do teste t de amostras independentes ou do teste de Wilcoxon, dependendo da distribuição dos dados. Foi utilizado o programa R, versão 4.1.0 (The R Project for Statistical Computing, Viena, Áustria).
 
Os desfechos % e CVF% ajustada foram avaliados quanto à acurácia, sensibilidade, especificidade, VPP, VPN, RV+ e RV− no diagnóstico de PM, utilizando os valores pletismográficos de CPT como padrão ouro (Tabela 1).
 
De 277 exames, 76 atenderam aos critérios de inclusão. Destes, 68 foram classificados como OFAP e 8 foram classificados como PM.
 
O modelo de Lefante foi mais acurado na diferenciação entre casos de OFAP e casos de PM, atingindo uma acurácia de 71%, que contrasta com a acurácia do modelo de Pereira de apenas 43%. O modelo de Pereira não conseguiu classificar 42,1% dos casos, considerando 32 testes como sendo indefinidos. Esse alto número de casos indefinidos é consistente com os achados do estudo original de Pereira et al.,(4) no qual 50% dos testes foram classificados como indefinidos (30/60 casos), o que é uma limitação inerente ao modelo de Pereira desde a sua proposição.
 
Em nosso estudo, o modelo de Pereira apresentou um VPP de apenas 23% na detecção de PM, o qual contrasta com os 85% relatados no estudo original,(4) assim como um VPN de 97%, que está mais próximo dos 95% relatados no estudo citado.(4) Uma possível explicação para a discrepância no VPP pode ser a diferença na prevalência de PM entre as duas amostras. No estudo de Pereira et al.,(4) foram selecionados artificialmente 30 pacientes com PM e 30 pacientes com OFAP, ou seja, uma prevalência de PM de 50%, enquanto em nossa amostra consecutiva obtivemos uma prevalência de PM de 10,5%.
 
Em 2019, Sadigursky et al.(10) também revisitaram o modelo de Pereira, avaliando sua acurácia em comparação com a medida dos volumes pulmonares por pletismografia, e constataram que o modelo de Pereira apresentou baixo VPP na detecção de PM, o que é consistente com nossos achados.
 
Considerando que o modelo de Pereira classifica de forma confiável a causa da redução da CVF apenas em pacientes com % ≥ 25%, 45 (59,2%) dos pacientes de nossa amostra (ou seja, aqueles com % < 25%) seriam encaminhados para pletismografia. Por outro lado, se considerarmos que apenas casos classificados como suspeitos de PM pelo modelo de Lefante teriam que ser submetidos à pletismografia, apenas 24 (31,6%) dos pacientes de nossa amostra precisariam ser submetidos a esse exame. Classificando todos os casos, inclusive os classificados como indefinidos pelo modelo de Pereira, o modelo de Lefante manteve um alto VPN de 94%, demonstrando o poder do modelo para detectar casos de OFAP com acurácia. A partir desses resultados, é possível vislumbrar a potencial vantagem do modelo de Lefante em termos de definição de maior número de casos quanto ao diagnóstico fisiopatológico, poupando custos e tempo.
 
Este estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, trata-se de um estudo unicêntrico. Em segundo lugar, foi realizado durante as restrições impostas pela pandemia de COVID-19. Isso limitou o tamanho da amostra.
 
Inferimos que o modelo de Lefante tem seu maior valor em casos de exames negativos, nos quais possui um alto grau de acurácia no diagnóstico de OFAP, identificando pacientes que não necessitariam de pletismografia e demonstrando um ganho significativo de acurácia em comparação com o modelo de Pereira.
 
AGRADECIMENTOS
 
Gostaríamos de agradecer ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas do HU-UFSC e à equipe do Laboratório de Função Pulmonar do NUPAIVA do HU-UFSC o apoio e colaboração imprescindíveis para a materialização do presente trabalho.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
BMSW e JTMJ: concepção e planejamento do trabalho; interpretação das evidências; redação e revisão das versões preliminares e definitiva do texto; aprovação do texto final. AMS: planejamento do trabalho. RMS: concepção e planejamento do trabalho.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Mottram CD. Ruppel’s Manual of Pulmonary Function Testing. 11th ed. St. Louis: Elsevier; 2018. p. 39-70; p. 104-128.
2.            Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes para teste de função pulmonar. J Pneumol. 2002;28(Suppl 3):S1-S82; S95-S100.
3.            Pellegrino R, Viegi G, Brusasco V, Crapo RO, Burgos F, Casaburi R, et al. Interpretative strategies for lung function tests. Eur Respir J. 2005;26(5):948-968. https://doi.org/10.1183/09031936.05.00035205
4.            Pereira CAC, Sato T. Limitação ao fluxo aéreo e capacidade vital reduzida: distúrbio ventilatório obstrutivo ou combinado ? J Bras Pneumol. 1991;17(2):59-68.
5.            Lefante JJ, Glindmeyer HW, Weill H, Jones RN. Adjusting FVC for the effect of obstruction. Chest. 1996;110(2):417-421. https://doi.org/10.1378/chest.110.2.417
6.            Glady CA, Aaron SD, Lunau M, Clinch J, Dales RE. A spirometry-based algorithm to direct lung function testing in the pulmonary function laboratory. Chest. 2003;123(6):1939-1946. https://doi.org/10.1378/chest.123.6.1939
7.            Khalid I, Morris ZQ, Khalid TJ, Nisar A, Digiovine B. Using spirometry to rule out restriction in patients with concomitant low forced vital capacity and obstructive pattern. Open Respir Med J. 2011;5:44-50. https://doi.org/10.2174/1874306401105010044
8.            Pereira CA, Sato T, Rodrigues SC. New reference values for forced spirometry in white adults in Brazil. J Bras Pneumol. 2007;33(4):397-406. https://doi.org/10.1590/S1806-37132007000400008
9.            Lessa T, Pereira CAC, Soares MR, Matos R, Guimarães VP, Sanches G, et al. Reference values for pulmonary volumes by plethysmography in a Brazilian sample of white adults. J Bras Pneumol. 2019;45(3):e20180065. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20180065
10.          Sadigursky LV, Pereira CA, Soares MR. Distúrbio Ventilatório Obstrutivo com CVF Re-duzida---Quando Excluir Distúrbio Combinado? Proceedings of the 18th Congresso Paulista de Pneumologia Paulista; 2019 Nov 20-23; São Paulo. SPPT.

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