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Cartas ao Editor

Doença pulmonar e o sistema nervoso autônomo: um novo mecanismo fisiopatológico para a síndrome de Lady Windermere

Pulmonary disease and the autonomic nervous system: a new pathophysiological mechanism for Lady Windermere syndrome

Sandra Jungblut Schuh1, Claudia Fontoura Dias1, Gabriela Jungblut Schuh2, Gisela Unis1

DOI: 10.36416/1806-3756/e20200529

AO EDITOR,
 
A síndrome de Lady Windermere (SLW) é o epônimo que designa uma forma bronquiolocêntrica nodular de doença pulmonar que é causada por micobactérias não tuberculosas (MNT) e que ocorre predominantemente em mulheres idosas brancas altas e magras sem doença pulmonar prévia. Os achados tomográficos da SLW incluem nódulos centrolobulares, opacidades do tipo árvore em brotamento e bronquiectasias. As lesões ocorrem predominantemente no lobo médio e na língula (Figura 1). Embora o complexo Mycobacterium avium seja o agente causador mais comum, outras espécies podem causar a SLW. A doença geralmente tem evolução crônica e comportamento indolente e é caracterizada por um aumento progressivo das lesões. Certas características clínicas e laboratoriais são mais comuns em pacientes com SLW do que na população geral: escoliose, pectus excavatum, prolapso da válvula mitral, síndrome de hipermobilidade articular benigna e mutações genéticas (relacionadas à fibrose cística, função ciliar, doenças do tecido conjuntivo e função imunológica). Foram também relatadas alterações endócrinas (redução de estrogênio, leptina e desidroepiandrosterona, bem como aumento de adiponectina e cortisol, por exemplo). A maioria dos pacientes com SLW não é fumante, e a doença também pode afetar homens, embora com frequência muito menor. A média de idade no momento do diagnóstico geralmente é maior em homens que em mulheres. O comprometimento da depuração brônquica faz parte do processo fisiopatológico. A SLW é multifatorial: envolve fatores genéticos e ambientais, assim como fatores relacionados ao envelhecimento.

 
Propomos aqui um mecanismo fisiopatológico para a SLW baseado no conhecimento da fisiologia e fisiopatologia do sistema nervoso autônomo, no processo de envelhecimento e na menopausa. Sugerimos que alterações da mecânica respiratória e disfunção autonômica participam do processo patológico; a SLW ocorre predominantemente em mulheres em virtude de diferenças autonômicas específicas do sexo, além dos efeitos do envelhecimento e da menopausa. Uma redução relativa da atividade parassimpática, alterações da elasticidade do pulmão e da parede torácica e uma redução da força muscular respiratória podem predispor à colonização e doença por MNT. Alterações autonômicas podem reduzir a produção de muco e modificar suas características viscoelásticas, comprometendo a função da musculatura lisa das vias aéreas e o reflexo de tosse. A vagotomia inibe significativamente ou suprime o reflexo de tosse. A atropina e o bloqueio vagal reduzem a secreção basal das glândulas submucosas traqueobrônquicas. A atropina inalatória retarda o transporte mucociliar, o que sugere que o tônus vagal influencia a secreção, a depuração das secreções traqueobrônquicas ou ambas. O sistema nervoso parassimpático também atua por meio da regulação local da inflamação e imunidade pulmonar.
 
A desnervação gera hipersensibilidade aos estímulos, que pode ser atribuída, pelo menos parcialmente, a um aumento do número de receptores na membrana pós-sináptica. A metacolina atua nos receptores muscarínicos. Em um estudo no qual foram comparados pacientes com asma submetidos ao teste de broncoprovocação com metacolina, os idosos apresentaram maior redução da CVF e menor percepção de broncoconstrição do que os mais jovens.(1) Em um estudo com pacientes com DPOC submetidos ao teste de broncoprovocação com metacolina, a prevalência de hiper-reatividade das vias aéreas foi maior em mulheres que em homens.(2) Esses achados podem ser atribuídos, pelo menos parcialmente, à disfunção autonômica. Fatores sistêmicos e locais estão relacionados com desnervação e com infecções em indivíduos submetidos a transplante de pulmão. Em indivíduos submetidos a transplante de órgão sólido, a infecção por MNT é mais comum naqueles submetidos a transplante de pulmão.
 
As diferenças entre homens e mulheres quanto ao equilíbrio autonômico estão relacionadas com variações hormonais na mulher; as alterações autonômicas também estão relacionadas com o envelhecimento. Modificações do colágeno da matriz extracelular podem comprometer a atividade autonômica. Muitas fibras nervosas parassimpáticas e quase todas as fibras nervosas simpáticas tocam as células efetoras ou, em alguns casos, acabam no tecido conjuntivo adjacente às células a serem estimuladas. A acetilcolinesterase está ligada ao colágeno e aos glicosaminoglicanos no tecido conjuntivo local. Um estudo relatou as interações entre acetilcolinesterase e colágeno, esfingomielina e fosfatidilcolina.(3) Foram relatadas diferenças entre mulheres na menopausa e na pré-menopausa, bem como entre mulheres na menopausa e homens quanto a biomarcadores de renovação do colágeno. (4) Outros metabólitos bioquímicos também se alteram durante a menopausa: esfingomielina (um componente da membrana celular, principalmente de células nervosas), leucina e fosfatidilcolina.(5) Um estudo multicêntrico de base populacional realizado na Europa constatou que a função pulmonar (principalmente a CVF) diminuiu mais rapidamente em mulheres em transição e na pós-menopausa, além da alteração esperada em virtude da idade.(6)
 
Foram descritas alterações autonômicas na síndrome de hipermobilidade articular, síndrome de Ehlers-Danlos e síndrome do prolapso da válvula mitral. A SLW pode apresentar manifestações em comum com essas doenças.
 
As diferenças autonômicas podem ser responsáveis pela diferença entre homens e mulheres com fibrose cística quanto à média de expectativa de vida, que é 2 anos e 7 meses menor para as mulheres.(7,8) Essa hipótese é consistente com o fato de que, embora as mulheres com fibrose cística recebam transplante de pulmão mais cedo que os homens, a sobrevida pós-transplante é a mesma para homens e mulheres e independente do sexo do doador.(7) É importante notar também que as meninas com fibrose cística têm infecções mais cedo na vida do que os meninos, e a maior diferença entre indivíduos do sexo masculino e feminino quanto à idade de início é quanto a infecções por MNT.(8)
 
Embora a DPOC esteja relacionada com doença pulmonar fibrocavitária por MNT, a maioria dos pacientes com SLW não é fumante. A nicotina atua nos receptores nicotínicos de acetilcolina. Há também diferenças entre homens e mulheres quanto aos efeitos do tabagismo nos receptores nicotínicos de acetilcolina.(9) A ausência de estimulação dos receptores nicotínicos pode estar relacionada com predisposição para a SLW.
 
 
Em um estudo com animais, relatou-se que a nebulização de solução salina hipertônica estimula os receptores aferentes vagais pulmonares,(10) o que poderia explicar parcialmente o efeito terapêutico da nebulização de solução salina hipertônica em humanos infectados por MNT.
 
O aumento do número de casos diagnosticados de doença pulmonar por MNT no mundo e a terapia atual para a doença (longos ciclos de antibióticos, resultando em efeitos colaterais, resistência e recidiva) reforçam a necessidade de novas linhas de pesquisa. Estudos a respeito do sistema nervoso autônomo e respiratório poderiam ajudar a compreender melhor o mecanismo fisiopatológico da SLW e ter impacto em condições pulmonares e sistêmicas, tais como pós-operatório de transplante de pulmão, fibrose cística, tabagismo e declínio da função pulmonar na menopausa, bem como em outras doenças que se comportam de forma diferente em homens e mulheres, tais como hipertensão arterial pulmonar idiopática e a resposta inflamatória na COVID-19.
 
REFERÊNCIAS
 



  1. Cuttitta G, Cibella F, Bellia V, Grassi V, Cossi S, Bucchieri S, et al. Changes in FVC during methacholine-induced bronchoconstriction in elderly patients with asthma: bronchial hyperresponsiveness and aging. Chest. 2001;119(6):1685-1690. https://doi.org/10.1378/chest.119.6.1685

  2. Kanner RE, Connett JE, Altose MD , Buist AS, Lee WW, Tashkin DP, et al. Gender difference in airway hyperresponsiveness in smokers with mild COPD. The Lung Health Study. Am J Respir Crit Care Med. 1994;150(4):956-961. https://doi.org/10.1164/ajrccm.150.4.7921469

  3. Cohen R, Barenholz Y. Characterization of the association of Electrophorus electricus acetylcholinesterase with sphingomyelin liposomes. Relevance to collagen-sphingomyelin interactions. Biochim Biophys Acta. 1984;778(1):94-104. https://doi.org/10.1016/0005-2736(84)90452-8

  4. Kehlet SN, Willumsen N, Armbrecht G, Dietzel R, Brix S, Henriksen K, et al. Age-related collagen turnover of the interstitial matrix and basement membrane: Implications of age- and sex-dependent remodeling of the extracellular matrix. PLoS One. 2018;13(3):e0194458. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0194458

  5. Cui X, Yu X, Sun G, Hu T, Likhodii S, Zhang J, et al. Differential metabolomics networks analysis of menopausal status. PLoS One. 2019;14(9):e0222353. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0222353

  6. Triebner K, Matulonga B, Johannessen A, Suske S, Benediktsdóttir B, Demoly P, et al. Menopause Is Associated with Accelerated Lung Function Decline. Am J Respir Crit Care Med. 2017;195(8):1058-1065. https://doi.org/10.1164/rccm.201605-0968OC

  7. Han MK, Arteaga-Solis E, Blenis J, Bourjeily G, Clegg DJ, DeMeo D, et al. Female Sex and Gender in Lung/Sleep Health and Disease. Increased Understanding of Basic Biological, Pathophysiological, and Behavioral Mechanisms Leading to Better Health for Female Patients with Lung Disease. Am J Respir Crit Care Med. 2018;198(7):850-858. https://doi.org/10.1164/rccm.201801-0168WS

  8. Harness-Brumley CL, Elliott AC, Rosenbluth DB, Raghavan D, Jain R. Gender differences in outcomes of patients with cystic fibrosis. J Womens Health (Larchmt). 2014;23(12):1012-1020. https://doi.org/10.1089/jwh.2014.4985

  9. Verplaetse TL, Morris ED, McKee SA, Cosgrove KP. Sex differences in the nicotinic acetylcholine and dopamine receptor systems underlying tobacco smoking addiction. Curr Opin Behav Sci. 2018;23:196-202. https://doi.org/10.1016/j.cobeha.2018.04.004

  10. Guardiola J, Saad M, Yu J. Hypertonic saline stimulates vagal afferents that respond to lung deflation. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol. 2019;317(6):R814-R817. https://doi.org/10.1152/ajpregu.00064.2019



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