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Valores de referência para espirometria forçada em adultos negros no Brasil

Spirometry reference values for Black adults in Brazil

Tarciane Aline Prata1,a, Eliane Mancuzo2,3,b, Carlos Alberto de Castro Pereira4,c,Silvana Spíndola de Miranda2,d, Larissa Voss Sadigursky5,e, Camila Hirotsu6,f, Sérgio Tufik6,g

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562018000000082

ABSTRACT

Objective: To derive reference equations for spirometry in healthy Black adult never smokers in Brazil, comparing them with those published in 2007 for White adults in the country. Methods: The examinations followed the standards recommended by the Brazilian Thoracic Association, and the spirometers employed met the technical requirements set forth in the guidelines of the American Thoracic Society/European Respiratory Society. The lower limits were defined as the 5th percentile of the residuals. Results: Reference equations and limits were derived from a sample of 120 men and 124 women, inhabitants of eight Brazilian cities, all of whom were evaluated with a flow spirometer. The predicted values for FVC, FEV1 , FEV1 /FVC ratio, and PEF were better described by linear equations, whereas the flows were better described by logarithmic equations. The FEV1 and FVC reference values derived for Black adults were significantly lower than were those previously derived for White adults, regardless of gender. Conclusions: The fact that the predicted spirometry values derived for the population of Black adults in Brazil were lower than those previously derived for White adults in the country justifies the use of an equation specific to the former population.

Keywords: Spirometry; Reference values; African continental ancestry group.

RESUMO

Objetivo: Derivar equações de referência para a espirometria forçada em adultos brasileiros negros, saudáveis, que nunca fumaram, e comparar os resultados com os valores previstos para a raça branca publicados em 2007. Métodos: Os exames seguiram as normas recomendadas pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, e os espirômetros preencheram os requisitos técnicos exigidos pelas diretrizes da American Thoracic Society/European Respiratory Society. Os limites inferiores foram derivados pela análise do 5º percentil dos resíduos. Resultados: Equações e limites de referência foram derivados de uma amostra com 120 homens e 124 mulheres, habitantes de oito cidades brasileiras, utilizando-se um espirômetro de fluxo. Os valores previstos para CVF, VEF1, relação VEF1/CVF e PFE foram mais bem ajustados por regressões lineares, enquanto os fluxos, por equações logarítmicas. Os valores de eferência de VEF1 e CVF para ambos os sexos foram significativamente menores quando comparados aos previstos para adultos da raça branca no Brasil. Conclusões: O fato de que os valores previstos da espirometria forçada derivados para a população negra no Brasil tenham sido inferiores aos previstos para a raça branca no país justifica a utilização de uma equação específica para adultos negros.

Palavras-chave: Espirometria; Valores de Referência; Grupo com ancestrais do continente

INTRODUÇÃO

A espirometria é um teste essencial no diagnóstico e acompanhamento das doenças respiratórias. Os valores obtidos devem ser comparados a valores previstos adequados, derivados de indivíduos não fumantes e livres de doenças cardiorrespiratórias.(1-3)

Novas equações para valores de referência em brancos foram derivadas para a população brasileira em 2007.(4) Os valores diferem de forma significativa de valores publicados baseados em outras equações.(5-7)

Em relação aos negros, diversos estudos mostraram que os valores de referência para a espirometria, corrigidos para os dados antropométricos, são menores, o que levou à recomendação para que sejam usadas equações específicas de acordo com a raça.(3,7,8) Antes da disponibilidade dessas equações, um fator de ajuste (entre 10-15% a menos) era aplicado nas equações derivadas de indivíduos brancos para sua aplicação em negros, o que se mostrou inadequado.(9)

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015, 45,11% dos brasileiros declararam-se brancos; 45,06%, pardos; 8,86%, negros; 0,47%, amarelos; e 0,38%, indígenas.(10)

Dois estudos incluíram adultos brasileiros negros para a obtenção e a comparação de valores de referência, tendo concluído que tais valores eram semelhantes aos observados em brancos.(11,12) Os exames foram realizados em espirômetros hoje considerados obsoletos.(4,13) A raça pode ser caracterizada pela ancestralidade genética ou ser autodeclarada. Um grande estudo nos EUA demonstrou que indivíduos com maior ancestralidade africana têm menores valores espirométricos, quando corrigidos para idade, sexo e estatura.(14) De modo semelhante, em uma grande coorte brasileira de indivíduos seguidos desde o nascimento e avaliados funcionalmente aos 30 anos de idade, homens e mulheres com maior ancestralidade africana tiveram menores valores para CVF e VEF1, corrigidos para a estatura e outros fatores.(15) Independentemente da ancestralidade genética, diferenças antropométricas (em particular, a relação menor do tronco com a estatura em pé em negros) e fatores ambientais, tais como nutrição e influências socioeconômicas, podem contribuir para essas diferenças.(15-17)

O objetivo do presente estudo foi derivar valores de referência para os principais parâmetros da curva expiratória forçada para adultos negros no Brasil com equipamentos modernos e comparar os resultados com os valores previstos para a população branca, derivados em 2007.(4)

MÉTODOS

Os dados foram obtidos pelo programa Respire e Viva, em 2004, em oito cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Santos, Brasília e Recife) e, entre 2015 e 2017, em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e comunidades quilombolas no estado de Minas Gerais. (4) Foram selecionados indivíduos negros por meio de convite verbal e anúncios afixados em diversos locais. Os voluntários que aceitaram e consentiram em participar do estudo responderam inicialmente a um questionário respiratório traduzido da American Thoracic Society (ATS)/Division of Lung Diseases, validado no Brasil, e realizaram os exames nos locais disponíveis.(18,19) O projeto do estudo foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa institucional sob o número CAAE 60844316.0.0000.5149.

Os critérios de inclusão no estudo foram os seguintes:

Idade acima de 20 anos no sexo feminino e 25 anos no sexo masculino, idades em que são alcançados os valores máximos de CVF(20)
Índice de massa corpórea (IMC) entre 18 e 30 kg/m2
Ausência de sintomas respiratórios significativos definidos pelo questionário(19)
Ausência de estado gripal ou qualquer outra doença pulmonar nos últimos sete dias
Ausência de antecedentes de doença respiratória que poderiam resultar em disfunção pulmonar permanente, tais como tuberculose, asma ou cirurgia torácica, sendo a asma caracterizada por dois ou mais ataques de chiado, aliviados com broncodilatador, em qualquer época da vida
Ausência de doença cardíaca em qualquer época da vida, diagnosticada por algum médico

Indivíduos com diagnóstico de hipertensão arterial não controlada
Não ter trabalhado em ambientes com alta concentração de pó por 1 ano ou mais, que constituísse um fator de risco para doença pulmonar
Não ter fumado durante toda a vida
Cor autorreferida como negra, associada à presença de características fenotípicas observadas pelos investigadores (cor da pele e dos olhos, cor e textura dos cabelos, forma do nariz e dos lábios)(21)

Foram excluídos indivíduos com antecedentes de pneumonia e internação no último ano; aqueles com exposição à fumaça de fogão a lenha, bem como pessoas expostas à fumaça de cigarro no quarto de dormir; e casos com divergência entre a cor autorreferida e as características fenotípicas observadas pelos pesquisadores.

Os indivíduos foram pesados e medidos com roupas leves e sem sapatos. As espirometrias foram realizadas em posição sentada, com clipe nasal, utilizando espirômetros Multispiro (Creative Biomedics, San Clemente, CA, EUA) em 2004 e espirômetros Koko (Pulmonary Data Service Inc., Louisville, CO, EUA) entre 2015 e 2017. Os espirômetros preencheram os requisitos técnicos exigidos pelas diretrizes da ATS.(2) Os testes obedeceram às normas e aos critérios de aceitação e reprodutibilidade sugeridos pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT)(1) e pelas diretrizes da ATS/European Respiratory Society.(22) O esforço inicial adequado foi avaliado pelo volume retroextrapolado < 0,15 l ou 5% da CVF (o que fosse maior). O pico de fluxo foi considerado para a avaliação do esforço inicial.(1) Debris, vapor d'água condensado ou muco acumulado no sensor podem aumentar o gradiente de pressão e resultar em fluxos e volumes elevados após a integração (erro de resistência). Testes com picos de fluxo acima de 14 l/s em homens e 11 l/s em mulheres foram excluídos.(4) Também foram excluídos exames com pico de fluxo baixo em comparação ao VEF1, indicando esforço inadequado, caracterizado por relação VEF1 (ml)/PFE (l/min) > 8,5 no sexo masculino e > 8,8 no sexo feminino. Esses valores excedem o percentil 99 observado no estudo Respire e Viva de 2004, que incluiu casos de ambas as raças, sendo 413 participantes do sexo masculino e 447 do sexo feminino (dados não publicados). Naquele estudo, os pacientes deveriam ter pelo menos dois valores de pico de fluxo com diferença ≤ 10% do maior valor, além dos critérios usuais de reprodutibilidade para VEF1 e CVF (0,15 l).(4)

Preenchidos os critérios de aceitação e reprodutibilidade, os maiores valores para a CVF, VEF1 e PFE foram anotados. Os fluxos expiratórios foram derivados das manobras com maior soma de CVF e VEF1.(1,22)

Os testes foram realizados pelos autores ou por técnicos certificados pela SBPT. Calibrações antes de cada período de trabalho foram realizadas com seringas de 3 l. Todos os testes foram revistos após a impressão das três melhores curvas.

O tamanho da amostra foi baseado em uma recomendação da European Respiratory Society, a qual sugeriu que mais de 100 indivíduos de cada sexo devem ser incluídos para estudos de valores de referência de função pulmonar.(23)

Para a análise dos resultados foi utilizado o programa estatístico IBM SPSS Statistics, versão 22.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA). As etapas para os cálculos seguiram as descritas por Pereira et al.(4) Os limites inferiores das regressões foram calculados pelo 5º percentil dos resíduos não padronizados. Os valores espirométricos e antropométricos obtidos nas três principais cidades do estudo (São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro) foram comparados por ANOVA, e a influência dos locais sobre as variáveis espirométricas, se presentes, foram reavaliadas por análise de covariância.

As diferenças entre os valores previstos para a raça branca e os obtidos no presente estudo foram desenhados contra os previstos publicados para raça branca em 2007. O teste t de Student pareado foi utilizado para a comparação das médias. Devido às múltiplas comparações, o nível de significância foi de α < 0,01.

 




RESULTADOS

Dentre os 264 adultos negros que realizaram espirometria, foram incluídos na análise final 244 indivíduos (124 mulheres e 120 homens). Foram excluídos 11 mulheres e 9 homens por valores discrepantes da relação CVF/altura2 ou por esforço inicial submáximo. Os dados dos participantes foram coletados nas seguintes cidades: São Paulo, em 88; Belo Horizonte e comunidades quilombolas, em 83; Rio de Janeiro, em 52; Salvador, em 10; e outras cidades, em 11. A distribuição para os dados antropométricos é mostrada na Tabela 1. A variação de idade nos sexos masculino e feminino foi de 26-82 anos e 20-83 anos, respectivamente. A mediana de estatura nos sexos masculino e feminino foi de 171 cm (variação: 151-187 cm) e 158 cm (variação: 145-175 cm), respectivamente.
 



Os valores médios e a dispersão para os dados espirométricos, expressa pelos desvios-padrão, são mostrados na Tabela 2. A ANOVA demonstrou que a CVF no sexo feminino foi menor em Belo Horizonte quando comparada com a CVF obtida em São Paulo e Rio de Janeiro. Entretanto, através da análise de covariância, levando-se em conta a idade e a estatura, essa diferença não permaneceu significativa. Em Belo Horizonte foram incluídas mulheres com média de idade maior que nos outros locais de coleta de dados (56 ± 17 anos vs. 43 ± 14 anos; p < 0,01).

 



Para VEF1, CVF, VEF1/CVF e PFE houve melhores ajustes com equações lineares, enquanto o melhor ajuste se deu através de equações logarítmicas para os fluxos. As equações de predição são mostradas na Tabela 3 para o sexo masculino e na Tabela 4 para o sexo feminino.(24,25) O peso não teve influência relevante nos valores de referência.

Os valores para os coeficientes de explicação (r2) foram, em geral, semelhantes entre os sexos; os coeficientes de explicação foram maiores para CVF e VEF1 em comparação aos obtidos para os fluxos expiratórios. Para os fluxos, os maiores valores de r2 foram observados para FEF75%. Em relação à idade, o VEF1 caiu em média 24 ml/ano e 17 ml/ano nos sexos masculino e feminino, respectivamente.

No presente estudo, o limite inferior para a relação VEF1/CVF, com base nos dados derivados para adultos brasileiros negros, foi estabelecido subtraindo-se 9 do valor previsto para o sexo masculino (conforme demonstrado na Tabela 3) e 8 no sexo feminino (Tabela 4).(24,25) Valores abaixo de 70% foram observados em alguns homens com mais de 60 anos e em mulheres com mais de 65 anos.


 

 




As comparações entre os valores previstos de CVF e VEF1 para brancos em 2007(4) e os obtidos no presente estudo são mostradas na Figura 1. Os valores foram sistematicamente menores para CVF e VEF1 nos negros de ambos os sexos. No sexo masculino, a CVF foi em média 0,30 l menor, e o VEF1 foi 0,28 L menor (p < 0,001 para ambos), enquanto, no sexo feminino, a CVF foi em média 0,14 l menor, e o VEF1 foi 0,11 l menor (p < 0,001 para ambos). Observa-se que as diferenças entre os valores previstos para brancos e negros aumentam à medida que os valores previstos se elevam. Quando as diferenças para a CVF foram correlacionadas com a estatura, observaram-se correlações positivas significativas para os sexos masculino e feminino (r = 0,93 e r = 8,88, respectivamente; p < 0,001 para ambos).

O teste t de Student pareado demonstrou que a relação VEF1/CVF foi maior no sexo masculino nos brancos, embora, em média, apenas 1,0% (p = 0,021). No sexo feminino, os valores observados entre brancos e negros foram semelhantes (p = 0,12). Não houve uma correlação significativa entre a diferença da razão VEF1/CVF entre as raças e a idade em ambos os sexos.

Quando os valores previstos para brancos e negros foram traçados graficamente, observou-se que a diferença percentual foi proporcional para a CVF e para o VEF1 (~6,5%; p < 0,01) no sexo masculino, mas não foi proporcional no sexo feminino (Figura 2).
 



DISCUSSÃO

Pelo que sabemos, o presente estudo é o primeiro estudo multicêntrico no Brasil a derivar equações de referência para adultos negros, utilizando uma amostra significativa de voluntários e espirômetros que preenchem os critérios requeridos pela ATS.(2) A comparação entre as equações do presente estudo com as publicadas para adultos da raça branca em 2007(4) mostrou uma diferença não proporcional para CVF e VEF1 no sexo feminino, indicando que há a necessidade de uma equação específica para essa população, não se devendo utilizar um fator de correção para inferir valores a partir dos previstos para brancos.(9) No sexo masculino as diferenças para a CVF e VEF1 foram proporcionais, mas abaixo do sugerido na literatura.(9)

Para a derivação de valores de referência para a função pulmonar devem ser incluídos apenas indivíduos não fumantes, sem sintomas respiratórios ou doenças cardiorrespiratórias. Para isso, um questionário epidemiológico respiratório validado deve ser aplicado. Preenchidas as condições acima referidas, o uso de voluntários para o estabelecimento de valores de referência é válido.(18,26,27)

Valores de referência não devem ser extrapolados para idades e estaturas além daquelas incluídas nas equações de regressão.(1) Foram incluídos no presente estudo indivíduos de ambos os sexos, com estatura e idade variadas, mostrando uma boa representatividade. Idades de 82 anos no sexo masculino e 83 anos no sexo feminino foram as idades máximas em que se obtiveram participantes que atendiam os critérios de inclusão.


O menor número de participantes acima de 65 anos é explicado pela dificuldade de se encontrar indivíduos saudáveis que preencham os critérios de inclusão nessa faixa de idade.(4) Em relação à estatura, não houve diferença entre os estudos de 2007(4) e o atual. A mediana de estatura observada na presente amostra foi semelhante à descrita para a população brasileira: nos homens da amostra, 170,5 cm vs. 171 cm na população geral; nas mulheres, 158 cm na amostra vs. 159 cm na população geral.(28) A correlação negativa entre a relação VEF1/CVF e a estatura deve-se à maior geração de força muscular expiratória, com compressão das vias aéreas.(1) Não foram incluídos indivíduos com IMC > 30 kg/m2, excluindo-se assim o efeito da obesidade sobre os volumes pulmonares.(29)

A escolha do melhor modelo de regressão deve obedecer a diversos passos, dando-se preferência para equações lineares sempre que o ajuste for semelhante a outros modelos, por sua simplicidade. Semelhante ao estudo de 2007 para a raça branca,(4) as equações para os fluxos seguiram uma curva logarítmica, o que torna o limite inferior uma percentagem fixa do previsto, trazendo sensibilidade para a detecção de obstrução ao fluxo aéreo.(4) De particular interesse e à semelhança do observado na raça branca,(4) o FEF75% foi o parâmetro com maior coeficiente de explicação com os dados antropométricos.

Os valores para CVF e VEF1 no presente estudo foram menores quando comparados aos de adultos brancos,(4) mesmo considerando-se que, na raça branca, aproximadamente 10% dos indivíduos incluídos eram obesos.(4)

Há longo tempo se reconhece que indivíduos negros adultos têm menores valores de função pulmonar em comparação aos de cor branca, enquanto a relação VEF1/CVF é semelhante.(7,8,16,30-32) Esses achados foram confirmados em estudos nos quais a raça foi caracterizada pela ancestralidade genética.(14,15)

Estudos brasileiros relacionando a ancestralidade genética com a cor autodeclarada mostraram resultados discrepantes. No estudo de Menezes et al., essa correlação foi boa.(15) Dados semelhantes foram observados em um estudo não publicado envolvendo 137 indivíduos recrutados em São Paulo. Outros autores não encontraram correlações entre a raça autodeclarada e a ancestralidade genética no Brasil.(33) Em casos individuais, pode existir ampla dissociação entre a raça aparente e a determinada geneticamente. É importante assinalar ainda que os testes de ancestralidade genética para a caracterização de raça não são desprovidos de limitações.(34)

A diferença racial na função pulmonar tem sido atribuída em parte a fatores antropométricos, tais como a menor razão tronco/pernas (índice de Cormic) em indivíduos de cor negra.(15,16,32,35) Essa razão torna-se menor ainda com a elevação da estatura, o que explica o aumento da diferença entre as raças com valores crescentes da estatura.(36) Outros fatores considerados para explicar a diferença entre os valores de função pulmonar entre as raças são os fatores socioeconômicos e ambientais, que estão interligados com a raça em diversos países, incluindo o Brasil.(35,37) Entretanto, em um estudo nos EUA e no estudo de Menezes et al.,(5,16) esses fatores tiveram uma influência menor sobre a função pulmonar. Os fatores antropométricos, as condições socioeconômicas e outros indicadores explicam apenas em parte a diferença entre os valores espirométricos observados entre as raças.(17) A função pulmonar é determinada por diversos genes, e, no futuro, é possível que um amplo mapeamento genético associado à determinação da ancestralidade de raça consiga refinar os valores previstos de função pulmonar, além dos valores antropométricos.(38)

Contrariamente aos nossos resultados, dois estudos com amostras de adultos negros no Brasil não encontraram diferenças com os valores derivados para a espirometria na raça branca.(11,12) Scalambrini et al.(11) avaliaram 139 homens e 56 mulheres negras e compararam os valores observados aos obtidos em um estudo paralelo para a raça branca (334 homens e 141 mulheres),(37) ambos realizados na década de 1990 e utilizando um espirômetro Vitalograph (Vitalograph, Buckingham, Reino Unido). A raça foi caracterizada pelo observador. Uma revisão dos dados desses dois estudos,(11,39) não publicada, mostrou que os valores para CVF foram, na verdade, significativamente menores nos negros de ambos os sexos.

Rufino et al.(12) publicaram valores previstos em uma amostra de 146 homens e 242 mulheres, voluntários do estado do Rio de Janeiro. A raça foi autodeclarada. Foram comparados os valores para CVF e VEF1 em brancos e negros, sem diferença aparente, mas os dados eram brutos e não foram corrigidos para idade e estatura. O uso de um único espirômetro de fole (Vitalograph), usado durante os 4 anos do estudo, explica porque os valores de CVF foram em média 0,5 l menores do que os observados por Pereira et al.(4) A complacência do fole cai com o uso repetido, pelo acúmulo de debris e umidade, sem possibilidade de limpeza, resultando em uma subestimativa dos valores.(4,13)

Algumas limitações do presente estudo devem ser consideradas. Não foram avaliados a estatura em posição sentada e o nível socioeconômico, o que poderia reduzir as diferenças observadas na CVF e no VEF1.(16) O número de indivíduos com idade acima de 80 anos foi pequeno. Mulheres com estatura superior a 175 cm não estavam representadas.

Em conclusão, os valores previstos para a espirometria foram obtidos em uma amostra ampla de adultos negros da população brasileira. Esses valores mostraram-se inferiores aos valores publicados para adultos brancos em 2007,(4) justificando a necessidade de utilização de equações específicas.

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