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Série de Casos

Doença pulmonar por metal duro: uma série de casos

Hard metal lung disease: a case series

Rafael Futoshi Mizutani1, Mário Terra-Filho1,2, Evelise Lima1, Carolina Salim Gonçalves Freitas1, Rodrigo Caruso Chate3, Ronaldo Adib Kairalla1,2, Regiani Carvalho-Oliveira4, Ubiratan Paula Santos1

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562016000000260

ABSTRACT

Objective: To describe diagnostic and treatment aspects of hard metal lung disease (HMLD) and to review the current literature on the topic. Methods: This was a retrospective study based on the medical records of patients treated at the Occupational Respiratory Diseases Clinic of the Instituto do Coração, in the city of São Paulo, Brazil, between 2010 and 2013. Results: Of 320 patients treated during the study period, 5 (1.56%) were diagnosed with HMLD. All of those 5 patients were male (mean age, 42.0 ± 13.6 years; mean duration of exposure to hard metals, 11.4 ± 8.0 years). Occupational histories were taken, after which the patients underwent clinical evaluation, chest HRCT, pulmonary function tests, bronchoscopy, BAL, and lung biopsy. Restrictive lung disease was found in all subjects. The most common chest HRCT finding was ground glass opacities (in 80%). In 4 patients, BALF revealed multinucleated giant cells. In 3 patients, lung biopsy revealed giant cell interstitial pneumonia. One patient was diagnosed with desquamative interstitial pneumonia associated with cellular bronchiolitis, and another was diagnosed with a hypersensitivity pneumonitis pattern. All patients were withdrawn from exposure and treated with corticosteroid. Clinical improvement occurred in 2 patients, whereas the disease progressed in 3. Conclusions: Although HMLD is a rare entity, it should always be included in the differential diagnosis of respiratory dysfunction in workers with a high occupational risk of exposure to hard metal particles. A relevant history (clinical and occupational) accompanied by chest HRCT and BAL findings suggestive of the disease might be sufficient for the diagnosis.

Keywords: Lung diseases, interstitial; Cobalt; Tungsten; Occupational exposure; Hard metal.

RESUMO

Objetivo: Descrever aspectos relacionados ao diagnóstico e tratamento de pacientes com doença pulmonar por metal duro (DPMD) e realizar uma revisão da literatura. Métodos: Estudo retrospectivo dos prontuários médicos de pacientes atendidos no Serviço de Doenças Respiratórias Ocupacionais do Instituto do Coração, localizado na cidade de São Paulo, entre 2010 e 2013. Resultados: Entre 320 pacientes atendidos no período do estudo, 5 (1,56%) foram diagnosticados com DPMD. Todos os pacientes eram do sexo masculino, com média de idade de 42,0 ± 13,6 anos e média de tempo de exposição a metal duro de 11,4 ± 8,0 anos. Os pacientes foram submetidos a avaliação clinica, história ocupacional, TCAR de tórax, prova de função pulmonar, broncoscopia com LBA e biópsia pulmonar. Todos apresentaram distúrbio ventilatório restritivo. O achado de imagem à TCAR de tórax mais frequente foi de opacidades em vidro fosco (em 80%). Em 4 pacientes, o LBA revelou presença de células gigantes multinucleadas. Em 3, foi diagnosticada pneumonia intersticial por células gigantes na biópsia pulmonar. Houve o diagnóstico de pneumonia intersticial descamativa associada à bronquiolite celular em 1 paciente e de pneumonite de hipersensibilidade em 1. Todos foram afastados da exposição e tratados com corticoide. Houve melhora em 2 pacientes e progressão da doença em 3. Conclusões: Apesar de ser uma entidade rara, a DPMD deve ser sempre considerada em trabalhadores com risco ocupacional elevado de exposição a metais duros. A história clínica e ocupacional associada a achados em TCAR de tórax e LBA sugestivos da doença podem ser suficientes para o diagnóstico.

Palavras-chave: Doenças pulmonares intersticiais; Cobalto; Tungstênio; Exposição ocupacional; Metal duro.

INTRODUÇÃO

A doença pulmonar por metal duro (DPMD) é uma doença rara causada por exposição a partículas de ligas de me-tal duro, cuja composição principal é de carboneto de tungstênio (cerca de 90%) e cobalto (cerca de 10%) ou de cobalto e diamante.(1,2) Outros metais são utilizados em menor proporção, como o tântalo, titânio, níquel, nióbio e cromo.

Devido à sua extrema dureza e à manutenção de suas propriedades físicas mesmo em altas temperaturas, o metal duro é utilizado em ferramentas para corte e afiação de metais, perfuração de poços, polimento de diamante, próte-ses dentárias, entre outros. Os trabalhadores são expostos às partículas ricas em cobalto, na forma ionizada, e car-boneto de tungstênio, que são absorvidas pelos pulmões e pelo trato gastrintestinal, tanto na produção de pó de cobalto como no uso das ferramentas formadas por ligas do mesmo.

A fisiopatologia da DPMD é ainda desconhecida. O mecanismo proposto para a patogênese da doença intersticial envolve reação de hipersensibilidade ao cobalto. (3) Além disso, a susceptibilidade genética(4) também pode ter um papel na patogênese da doença, embora isso ainda não esteja bem compreendido.

A exposição ao cobalto pode causar diferentes formas de doença pulmonar, desde asma a diversos padrões inters-ticiais no pulmão.(1) A apresentação histopatológica mais conhecida e típica é a pneumonia intersticial de células gigantes (PIG), descrita por Liebow(5) em 1968. A PIG é caracterizada pela presença de células gigantes multinucle-adas, que podem apresentar aspectos "canibalísticos",(1,6) em espaços alveolares. Além da PIG, outros padrões descritos são de pneumonia intersticial usual, pneumonite de hipersensibilidade (PH) e pneumonia intersticial des-camativa.(1,6) No presente estudo, descrevemos aspectos relacionados ao diagnóstico e tratamento de pacientes com DPMD e uma revisão da literatura.

MÉTODOS

Os pacientes foram atendidos no Serviço de Doenças Respiratórias Ocupacionais da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo, entre 2010 e 2013. Todos foram submetidos a avaliação clinica, história ocupacional, TCAR de tórax, prova de função pulmonar (Elite DX Series, Medical Graphics Corporation, Saint Paul, MN, EUA), broncoscopia com LBA e biópsia pulmonar. Quando o tecido pulmonar obtido foi considerado insuficiente para o diagnóstico, foram realizadas biópsias cirúrgicas. Realizamos a análise de elementos através de espectrometria de fluorescência com energia dispersiva de raios X(7) em 2 pacientes (EDX 700-HS, Shimadzu Corporation, Analytical Instruments Divisi-on, Kyoto, Japão), a partir de amostras liofilizadas de tecido pulmonar.

RESULTADOS

Durante o período do estudo, 320 pacientes foram atendidos no serviço. Desses, 5 (1,56%) foram diagnosticados com DPMD. A média de idade ao diagnóstico foi de 42,0 ± 13,6 anos. Todos os pacientes eram do sexo masculino e estavam trabalhando no momento da avaliação inicial. O tempo de exposição ocupacional foi de 11,4 ± 8,0 anos. Dentre as ocupações relatadas, 1 paciente trabalhava com manutenção de ferramentas industriais, 2 eram afiadores de ferramentas industriais, e 2 eram operadores de retíficas (Tabela 1). O quadro clínico inicial foi de dispneia ao exercício e tosse em todos os pacientes.

À TCAR de tórax, o padrão radiológico mais comum foi de opacidades em vidro fosco, em 4 pacientes (80%; Figura 1). Outros achados presentes foram opacidades reticulares periféricas com bronquiectasias e bronquiolectasias de tração, em 3 (60%; Figura 2); micronódulos, em 2 (40%; Figura 2); e espessamento de parede brônquica, em 2 (40%; Tabela 1). Todos apresentaram distúrbio ventilatório restritivo, em graus variados, e 3 apresentaram redução da DLCO (Tabela 2).
 

 


 


 




Todos os pacientes foram submetidos à broncoscopia com LBA e à biópsia pulmonar, sendo que o diagnóstico foi realizado em amostra obtida por broncoscopia em 1 paciente e por biópsia cirúrgica em 4. Foram encontradas célu-las gigantes multinucleadas, em grande quantidade, no LBA em 4 dos 5 pacientes (Figura 3) e no tecido de biópsia em 3 (Figura 4). Em 1 paciente, foi diagnosticada pneumonia intersticial descamativa associada à bronquiolite celu-lar; em 1, padrão histológico sugestivo de PH crônica, sem evidências de outras exposições ocupacionais ou ambien-tais que pudessem estar associadas à PH; em 2, que tiveram amostras de tecido avaliadas por espectrometria de fluorescência com energia dispersiva de raios X, foi identificada a presença de tungstênio e, em 1 deles, também cobalto (Tabela 1).
 

 




Após o diagnóstico, todos os pacientes foram afastados da exposição ocupacional e receberam corticosteroide sis-têmico. Dois pacientes evoluíram com melhora clínica, radiológica e funcional, embora sem normalização da função pulmonar (Tabelas 1 e 2). Três pacientes apresentaram progressão da doença, na vigência de corticosteroide, sendo que 2 receberam adicionalmente azatioprina. Um paciente foi incluído em lista de transplante pulmonar, porém faleceu antes de sua efetivação.

DISCUSSÃO

Na série de casos apresentada, a presença de opacidades em vidro fosco na TCAR de tórax foi a alteração de ima-gem mais frequente. O distúrbio ventilatório restritivo foi o achado mais comum, encontrado em todos os pacientes. A presença de células gigantes multinucleadas no LBA foi encontrada na maioria dos pacientes e teve correlação com o padrão histológico típico de PIG. O tratamento com afastamento da exposição e corticosteroide obteve sucesso em 2 pacientes, e houve progressão da doença em 3 pacientes.

Os achados funcionais, citológicos, histopatológicos e de imagem são semelhantes aos encontrados em outros es-tudos.(1,6,8)

A DPMD é uma entidade rara, mesmo em populações com risco ocupacional. A publicação de casos ocorridos no Brasil é escassa e constituída pela descrição da doença em 4 pacientes.(9-12). Variam na literatura dados sobre a prevalência e a incidência da doença entre indivíduos expostos a metais duros. Meyer-Bisch et al.(13) e Kusaka et al.(14) não encontraram casos de DPMD em estudos transversais envolvendo 425 e 319 trabalhadores, respectiva-mente, com tempo médio de exposição a metal duro de 9 e 14 anos, respectivamente. Sprince et al.(15) encontraram somente 1 paciente com DPMD entre 290 trabalhadores da produção de metal duro avaliados. Os métodos de diagnóstico por imagens disponíveis à época podem ter contribuído para uma menor detecção relatada nos estudos referidos.(13-15)

A paucidade de casos e o variado tempo de latência também sugerem um possível mecanismo de hipersensibilidade envolvido na fisiopatologia da doença. Sabbioni et al.(3) encontraram 9% de trabalhadores com contato com metal duro com doença pulmonar, e sua prevalência não se correlacionou aos níveis de cobalto, tungstênio e tântalo, nem à idade, ao sexo e ao tempo de exposição ocupacional, o que, para os autores, reforçou a hipótese de hipersensibilidade. A recorrência de DPMD em pacientes submetidos a transplante pulmonar unilateral(16,17) ou bilateral,(6) mesmo após a cessação de exposição a metal duro, sugere uma hipótese de envolvimento de mecanismos imuno-mediados na fisiopatologia da doença. Naqueles 3 casos descritos de recorrência,(6,16,17) foi encontrado o padrão histológico de PIG, e não foram detectados traços de tungstênio ou cobalto nos pulmões transplantados, o que para os autores reforçou essa hipótese.

A susceptibilidade genética também contribui para o desenvolvimento da DPMD. Potolicchio et al.(4) demonstraram que a presença do polimorfismo HLA-DP Glu-β69 foi mais prevalente entre indivíduos com DPMD expostos a metal duro. Naquele estudo,(4) entre 20 indivíduos com DPMD expostos a metal duro, 19 (95%) apresentaram o polimorfismo, contra 17 (48,6%) entre 35 trabalhadores sem a doença e também expostos a metal duro.

A contribuição individual dos componentes principais do metal duro também tem sido investigada. Em modelos animais, a instilação de tungstênio sem cobalto não produziu inflamação pulmonar, enquanto o cobalto isolado foi capaz de produzir lesão tecidual. Quando combinados, cobalto e tungstênio apresentaram efeito sinérgico e causaram maior inflamação tecidual.(18,19)

Moriyama et al.(8) realizaram dosagem de elementos, por análise por microssonda eletrônica, em 17 pacientes com DPMD, e concluíram que cobalto e tungstênio se acumulam em lesões fibróticas centrolobulares. Naquele mesmo estudo, a imuno-histoquímica revelou que as partículas de tungstênio estavam contidas em lesões circundadas por macrófagos CD163+ e linfócitos T CD8+. Os autores(8) sugerem que tais macrófagos tenham um papel importante no desenvolvimento das lesões fibróticas.

A apresentação clínica é extremamente variada, como exemplificada na presente série de casos. O sintoma inicial é geralmente a dispneia aos esforços. Os pacientes que apresentam DPMD evoluem com padrão ventilatório restriti-vo e redução da DLCO, de variável gravidade.(1)

A presença de história clínica e ocupacional é imprescindível para o diagnóstico de DPMD. Os achados de imagem por radiografia ou TCAR de tórax, embora não sejam específicos, são importantes no diagnóstico junto a história de exposição e alterações histopatológicas. As principais alterações encontradas por Choi et al.(20) na TCAR de tórax foram opacidades em vidro fosco e opacidades lineares irregulares, com predomínio em campos inferiores, que foram visualizadas frequentemente também nos 5 casos que aqui descrevemos.

Diferentemente de outras pneumoconioses, nas quais, na maioria dos casos, a história ocupacional e os achados da radiografia de tórax são suficientes para a conclusão diagnóstica, a TCAR de tórax e uma amostra para análise citológica ou histológica são necessárias na DPMD. O LBA, método menos invasivo, pode confirmar o diagnóstico sem a necessidade de biópsia pulmonar.(1,21)

Forni,(21) revisando os achados citopatológicos de LBA descritos na literatura, concluiu que existem dois padrões que sugerem o diagnóstico de DPMD. O primeiro é caracterizado por aumento importante da celularidade, à custa de células gigantes multinucleadas características, linfocitose com redução da relação CD4/CD8 e eosinofilia. Para Forni,(21) esses achados refletem os achados histopatológicos da PIG e, em tais casos, prescindiriam de uma biópsia do tecido pulmonar. O segundo padrão de LBA é de predomínio de infiltrado linfomononuclear, com relação CD4/CD8 reduzida, raros eosinófilos e células gigantes, semelhante ao padrão encontrado em PH. Nesses casos, a biópsia é fundamental para a conclusão diagnóstica.(21)

Na presente série de casos, os padrões de LBA coincidiram com os descritos por Forni(21) e reforçam a relação en-tre a presença de células gigantes multinucleadas no LBA e o diagnóstico histológico de PIG.

Naqvi et al.,(1) em uma revisão de 100 pacientes com biópsias pulmonares e com diagnóstico de DPMD, revelaram que 59 desses tinham padrão de PIG, definido como a presença de células gigantes multinucleadas típicas em espa-ço alveolar. Moriyama et al.(8) reforçaram a importância da presença de lesões fibróticas centrolobulares na amostra histológica para o diagnóstico de DPMD, mesmo quando não há células gigantes multinucleadas. Outro espectro histopatológico encontrado é o de PH.(1,22) Os trabalhadores expostos a metal duro muitas vezes também utilizam óleo de corte, que pode estar contaminado por Mycobacterium immunogenum, cujos antígenos podem causar PH.(23)

No encontro de padrões histológicos não compatíveis com PIG, a análise de elementos químicos, por espectrome-tria de fluorescência por dispersão de raios-X em microscopia eletrônica, se faz importante para o diagnóstico.(1) O tungstênio é usualmente encontrado em níveis elevados,(1,8,24) enquanto o cobalto geralmente está em níveis mode-rados ou baixos, uma vez que possui alta solubilidade e é eliminado mais rapidamente.(1,3)

Apesar de alguns autores sugerirem que a PIG fosse um achado patognomônico de DPMD,(25) há descrição de vá-rios casos na literatura(1,6,8) com padrão histológico de PIG sem exposição ocupacional a metal duro e sem a detec-ção de tungstênio ou cobalto no tecido pulmonar. Outros autores(8,26) sugerem que esses casos correspondam a PIG idiopática. Outros casos de PIG descritos foram associados à exposição a titânio(27) e à nitrofurantoína.(28)

O tratamento da DPMD consiste na remoção da exposição ocupacional, que pode estabilizar e até mesmo melhorar a função pulmonar,(29) além do uso de corticosteroides. Devido à raridade dos casos na literatura, não existem estu-dos comparando o uso de corticoide em relação a placebo, mas a experiência clínica dos casos relatados é de que ocorre melhora com seu uso.(9,30) O uso de imunossupressores também não está bem estabelecido, embora sejam eventualmente utilizados.(9) O transplante pulmonar é uma opção terapêutica nos pacientes com doença pulmonar avançada e que progride a despeito do tratamento,(31) a despeito da possibilidade de recorrência do padrão PIG no pulmão transplantado.(6,16,17)

Embora a DPMD seja rara, devemos considerar sempre a possibilidade da doença entre trabalhadores expostos a metal duro, como afiadores de ferramentas, ferramenteiros, operadores de máquinas (tais como fresa, retíficas e tornos), operadores de disco de corte diamantado e em polidores de diamantes (com uso de discos de metal duro), aos nos defrontarmos com indivíduos com queixas clínicas, alterações funcionais e/ou de imagem. Dados da literatu-ra e a experiência com os casos aqui relatados sugerem que uma adequada anamnese ocupacional, alterações na TCAR de tórax compatíveis e achados no LBA (linfocitose com relação CD4/CD8 baixa e, principalmente, a presença de células gigantes em quantidade) podem ser suficientes para o diagnóstico, prescindindo de biópsia aberta. O tratamento é baseado no afastamento definitivo da exposição e uso de corticosteroides ou imunossupressores, com variados resultados.

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