Valor pode ser definido como a relação entre resultado e custo. Quanto melhor o resultado, melhor a entrega de determinado processo ou menor o seu custo, maior será o valor. Esse conceito tem sido utilizado atualmente, com propriedade, também para a saúde, reforçando a ideia de que é preciso obter os melhores resultados possíveis, como, por exemplo, sobrevida, independência funcional e satisfação, com os menores custos. Isso ganha importância ainda maior quando lembramos que os recursos, sejam eles monetários, humanos ou tecnológicos para a saúde, são finitos, e fazer mais com menos é decisivo para disponibilizar cuidado a todos que precisam. Imaginemos, então, o valor, para um paciente em ventilação mecânica, de uma analgesia adequada, da estratégia ventilatória protetora, de um protocolo de desmame, da cabeceira elevada, de lavarmos as mãos - todas são intervenções com grande resultado e baixíssimo custo. As recomendações brasileiras de ventilação mecânica, que têm como objetivo principal agregar valor à ventilação mecânica, foram publicadas em duas partes, devido a sua extensão e abrangência, por duas revistas brasileiras: o Jornal Brasileiro de Pneumologia(1,2) e a Revista Brasileira de Medicina Intensiva.(3,4)
A insuficiência respiratória é uma doença frequente, e, para os casos potencialmente reversíveis, o suporte ventilatório é salvador de vidas. Extrapolando os dados epidemiológicos dos EUA,(5) de 2,8 pacientes em ventilação mecânica a cada 1.000 pacientes/ano, para a realidade brasileira (população atual segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 203.175.000 habitantes),(6) podemos estimar que cerca de 570.000 pacientes necessitem de suporte ventilatório invasivo a cada ano. Simulando um tempo médio de ventilação mecânica de três dias, chega-se a 1.706.670 pacientes/dia em ventilação mecânica, e, com as informações do Censo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira de 2011,(7) que calculou haver no Brasil cerca de 25.000 leitos de UTI, podemos estimar que, a cada dia, 19% dos leitos de UTI serão utilizados por pacientes intubados. Ainda pegando emprestado os dados americanos,(5) cuja estimativa do custo da internação hospitalar para um paciente com insuficiência respiratória e com necessidade de ventilação mecânica é de US$ 34.000, podemos extrapolar que o Brasil deve gastar algo em torno de R$ 54,5 bilhões/ano, considerando-se 12% do gasto em saúde(8) e 1,1% do PIB(9) para o tratamento hospitalar de pacientes com insuficiência respiratória aguda ou crônica agudizada.
Os números expostos acima, com a ressalva de serem frutos de um simples exercício epidemiológico, matemático e financeiro, alerta para o enorme impacto da insuficiência respiratória e da ventilação mecânica para a política de saúde em nosso país. Por outro lado, é importante lembrar que o suporte ventilatório é sabidamente um tratamento custo-efetivo para a maior parte dos pacientes. Estudos publicados nos últimos anos mostram valores de US$ 26.000 a US$ 175.000 para quality-adjusted life-year (QALY, ano de vida ganho ajustado por qualidade de vida), dependendo da etiologia da insuficiência respiratória, das comorbidades e da idade do paciente.(10) Apesar de arbitrário, é prática atual aceitar como custo-efetivos os tratamentos resultando em US$ 50.000-150.000/QALY.(11)
As recomendações publicadas(1-4) ressaltam que os resultados do tratamento de pacientes com insuficiência respiratória aguda melhoraram muito nas últimas décadas, e o mais interessante é que esse avanço veio muito mais do melhor entendimento da fisiopatologia da insuficiência respiratória e da prevenção de complicações associadas à ventilação mecânica do que do desenvolvimento de novas drogas ou tecnologias. Os ventiladores mecânicos, na sua essência básica, mudaram muito pouco nesse período, mas a forma do seu uso mudou completamente, evoluindo de uma estratégia agressiva para a correção da hipoxemia e/ou hipercapnia para uma estratégia focada em ofertar uma ventilação alveolar mínima para garantir as trocas gasosas, poupando os pulmões de lesões adicionais, e, assim, dando o tempo necessário para a sua recuperação. O Brasil teve uma participação decisiva no desenvolvimento desses conceitos modernos de ventilação mecânica, particularmente no entendimento da fisiopatologia da SARA e no pioneirismo em demonstrar as vantagens da estratégia ventilatória protetora.(12,13) Apesar disso, dados recentes mostram que a mortalidade de pacientes em ventilação mecânica em nosso meio ainda é alta quando comparada com a de países desenvolvidos.(14) A dificuldade de acesso a leitos de UTIs, o número e a qualificação insatisfatória de profissionais de saúde destacados para o cuidado de pacientes com insuficiência respiratória, os equipamentos obsoletos e, principalmente, a falta de aderência às melhores práticas de cuidado são fatores que certamente contribuem para esse resultado preocupante.
As recomendações brasileiras de ventilação mecânica 2013(1-4) são uma importante iniciativa. Feitas por profissionais competentes e experientes, elas trazem o estado da arte em ventilação mecânica, apresentado de maneira clara e objetiva e com a preocupação de adequar essas recomendações à forma como praticamos a medicina intensiva em nosso país.
Apesar de reconhecer todo o esforço individual e coletivo dos autores e coordenadores dessa obra, precisamos estar conscientes de que essa é a etapa mais fácil do caminho em busca de um cuidado melhor para os pacientes em ventilação mecânica; o difícil, o grande desafio, não só aqui, mas em todo o mundo, é transformar recomendações e boas intenções em valor para os pacientes.(15) Ressalto que a maioria das recomendações aqui apresentadas não requer novas tecnologias ou maiores recursos financeiros e são, em grande parte, intuitivas e já conhecidas pelos profissionais que trabalham nas UTIs em nosso meio. Temos outro complicador: como implementá-las em um país com as características do Brasil: um país continental, heterogêneo, onde somos criativos mas pouco disciplinados em seguir recomendações, com carência de profissionais qualificados, sem cultura de treinamento e de educação profissional continuada para profissionais da saúde e com pouca mensuração da real qualidade do cuidado oferecido nas instituições de saúde pública ou privadas.
Os autores dessas recomendações(1-4) fizeram a sua parte, e temos mais um excelente guia na direção à ventilação mecânica com mais qualidade, segurança e valor para pacientes com insuficiência respiratória. O conteúdo e o racional estão postos; agora é hora de transformarmos essas evidências e recomendações em prática, e isso só irá acontecer com trabalho, disciplina e envolvimento de cada um de nós. Mãos a obra!
Guilherme Schettino
Médico Intensivista e Pneumologista, Departamento de Pacientes Graves, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo (SP) Brasil
Referências
1. Brazilian recommendations of mechanical ventilation 2013. Part I. J Bras Pneumol. 2014;40(4):327-63. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000400002
2. Brazilian recommendations of mechanical ventilation 2013. Part 2. J Bras Pneumol. 2014;40(5):458-486.
3. Barbas CS, Isola AM, Farias AM, Cavalcanti AB, Gama AM, Duarte AC, et al. Brazilian recommendations of mechanical ventilation 2013. Part I. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(2):89-121. http://dx.doi.org/10.5935/0103-507X.20140017
4. Brazilian recommendations of mechanical ventilation 2013. Part 2. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(3):215-39.
5. Wunsh H, Linde-Zwirbe WT, Angus DC, Hartman ME, Milbrandt EB, Kahn JM. The epidemiology of mechanical ventilation use in the United States. Crit Care Med. 2010;38(10):1947-53.
6. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE [homepage on the Internet]. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [updated 2014; cited 2014 Sep 30]. Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação. Available from: http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/
7. Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB [homepage on the Internet]. São Paulo: AMIB [c2012; cited 2014 Sep 30]. Relatório de Unidades de Terapia Intensiva. Available from: http://www.amib.org.br/index.php?id=631
8. Organização Pan-Americana de Saúde. Organização Mundial da Saúde. [homepage on the Internet]. Washington, DC: a Organização [cited 2014 Sep 30]. Available from: http://www.paho.org/hq/
9. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE [homepage on the Internet]. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [updated 2014; cited 2014 Sep 30]. Contas Nacionais Trimestrais. Available from: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaultcnt.shtm
10. Cooke CR. Economics of mechanical ventilation and respiratory failure. Crit Care Clin. 2012;28(1):39-55. http://dx.doi.org/10.1016/j.ccc.2011.10.004
11. Neumann PJ, Cohen JT, Weinstein MC. Updating cost-effectiveness--the curious resilience of $50,000-per-QALY threshold. N Engl J Med. 2014;371(9):796-7. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMp1405158
12. Azevedo LC, Park M, Salluh JI, Rea-Neto A, Souza-Dantas VC, Varaschin P, et al. Clinical outcomes of patients requiring ventilatory support in Brazilian intensive care units: a multicenter, prospective, cohort study. Crit Care. 2013;17(2):R63. http://dx.doi.org/10.1186/cc12594
13. Amato MB, Barbas CS, Medeiros DM, Magaldi RB, Schettino GP, Lorenzi-Filho G, et al. Effect of a protective-ventilation strategy on mortality in the acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 1998;338(6):347-54. http://dx.doi.org/10.1056/NEJM199802053380602
14. Serpa Neto A, Cardoso SO, Manetta JA, Pereira VG, Espósito DC, Pasqualucci Mde O, et al. Association between use of lung-protective ventilation with lower tidal volumes and clinical outcomes among patients without acute respiratory distress syndrome: a meta-analysis. JAMA. 2012;308(16):1651-9. http://dx.doi.org/10.1001/jama.2012.13730
15. Grol R, Grimshaw J. From best evidence to best practice: effective implementation of change in patients' care. Lancet. 2003;362(9391):1225-30. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(03)14546-1