Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
8394
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Artigo Original

O muco traqueobrônquico humano mantido em temperatura ambiente e suas propriedades físico-químicas

Physicochemical properties of human tracheobronchial sputum maintained at room temperature

Renata Claudia Zanchet, Gilvânia Feijó, Ada Clarice Gastaldi, José Roberto Jardim

ABSTRACT

Objective: To evaluate the effect that maintaining tracheobronchial sputum at room temperature has on the analysis of ciliary transport and cough, as well as on the contact angle. Methods: Hyaline sputum was collected from 30 individuals without pulmonary diseases, and purulent sputum was collected from patients with bronchiectasis. The samples were analyzed immediately after collection and again after 24 h. Results: After 24 h at room temperature, the purulent sputum presented an increase in cough-induced dislodgment (96 ± 50 vs. 118 ± 61 mm) and a decrease in the contact angle (32 ± 6 vs. 27 ± 6 degrees) (p < 0.05). For the hyaline sputum, there were no alterations in the parameters analyzed. Conclusion:  Hyaline tracheobronchial sputum can be stored in room temperature for 24 h without presenting alterations in ciliary transport or contact angle. However, purulent sputum should not be stored at room temperature for many hours, since ciliary transport and contact angle might be altered as a result.

Keywords: Temperature; Sputum; Cough; Mucociliary clearance

RESUMO

Objetivo: Verificar a influência da permanência em temperatura ambiente na análise da transportabilidade por ação ciliar e por tosse e do ângulo de contato do muco traqueobrônquico. Métodos: Foi coletado muco hialino de 30 indivíduos sem doença pulmonar, e purulento de vinte pacientes com bronquiectasia. As amostras foram analisadas logo após a coleta e novamente após 24 h. Resultados: Para o muco purulento, após 24 h em temperatura ambiente, houve aumento no deslocamento por tosse (96 ± 50 vs. 118 ± 61 mm) e diminuição do ângulo de contato (32 ± 6 vs. 27 ± 6 graus) (p < 0,05). Para o muco hialino não houve alterações nas medidas analisadas. Conclusão: O muco traqueobrônquico hialino pode ser armazenado em temperatura ambiente por 24 h sem que haja alterações em sua transportabilidade por ação ciliar ou em seu ângulo de contato. Por outro lado, o muco purulento não deve permanecer em temperatura ambiente por muitas h para que não se altere seu ângulo de contato e sua transportabilidade por tosse.

Palavras-chave: Temperatura ambiente; Muco; Tosse; Depuração mucociliar

Introdução

O muco humano traqueobrônquico é comumente estudado in vitro (1) com a finalidade de se avaliar a fisiologia e fisiopatologia do trato respiratório,(2) além da resposta a diferentes terapêuticas.(3)

O estudo in vitro do muco humano consiste em avaliar as propriedades físico-químicas do mesmo, como sua capacidade de ser transportado por ação ciliar e por tosse, também denominada transportabilidade. As propriedades químicas, que expressam o detalhamento da composição do muco e as propriedades físicas, como a viscoelasticidade, a adesividade, a spinnability e a wetabilitty, influenciam no transporte do muco, tanto in vitro como in vivo.(4)

Os métodos de estudo de transporte in vitro têm a vantagem de verificar a capacidade do muco ser transportado, independentemente de alterações existentes no epitélio ciliar das vias aéreas ou na capacidade de geração de fluxo adequado para a tosse eficaz.(4) Esses métodos são muito importantes principalmente no que tange à comprovação científica de técnicas de higiene brônquica ou de drogas mucolíticas, cujo produto final é a expectoração de muco.

Com o crescente interesse pelos estudos sobre o muco traqueobrônquico, é imprescindível o detalhamento de fatores técnicos que podem interferir nas análises das propriedades da amostra. Sabe-se que o muco deve ser analisado logo após a coleta(5) ou congelado para posterior análise, nas temperaturas de -20 °C,(6) -70 °C(1) ou -80 °C.(6) No entanto, até que a amostra de muco seja congelada ou analisada, ela permanece em temperatura ambiente. Esse período deve ser curto, mas, quando isso não é possível, quais as conseqüências da sua permanência em temperatura ambiente por períodos prolongados? Amostras de diferentes aspectos macroscópicos apresentam comportamentos diferentes em relação às suas propriedades físicas?

Existem relatos da análise do muco realizada após 60 min,(5) 120 min,(7,8) 180 min(9) e 240 min(10) da coleta. Alguns autores observaram que a permanência do muco a 37 °C, por 60 min,(9) ou em temperatura ambiente, por 24 h,(7) causou diminuição em sua viscosidade. Contudo, estes autores utilizaram amostras de escarro de apenas um paciente e não deixaram claro o grau de purulência das amostras.

O objetivo do presente trabalho foi verificar o efeito da permanência do muco em temperatura ambiente, por 24 h, no ângulo de contato e na transportabilidade do muco traqueobrônquico mucóide e do purulento.

Métodos

O muco de indivíduos sem doença pulmonar, considerado mucóide, foi coletado de 21 homens e 9 mulheres, submetidos à anestesia geral para cirurgia extratorácica, com média de idade de 37 ± 21 anos. Esses indivíduos não tinham histórico de doença pulmonar, nem sinais de infecção viral ou bacteriana do trato respiratório havia pelo menos seis semanas.

O muco purulento foi coletado de 20 pacientes (12 homens) portadores de bronquiectasia não decorrente de fibrose cística, com média de idade de 52 ± 10 anos. A bronquiectasia foi diagnosticada por exame clínico, radiograma e/ou tomografia computadorizada de tórax. Foram consideradas muco purulento amostras de cor amarela a esverdeada, com número de leucócitos por campo =24 e número de células epiteliais por campo =10.(11) Foi observado o número de células em dez campos microscópicos, com aumento de 1.000 x.

Este trabalho foi aprovado pelos comitês de ética em pesquisa do Centro Universitário do Triângulo e da Universidade Federal de São Paulo. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento informado.

O muco mucóide foi obtido pela técnica da raspagem da face interna do tubo endotraqueal após a extubação, em pacientes submetidos a cirurgia extratorácica com anestesia geral.(12) O muco purulento foi obtido de escarro, evitando-se a contaminação salivar. O muco foi coletado em no máximo três tosses repetidas, sem a utilização prévia de nenhum medicamento mucoativo ou técnica fisioterápica.

Após a coleta, as amostras eram armazenadas em recipientes plásticos, ficando submersas em óleo mineral, o qual era utilizado para evitar a desidratação do muco.(13) Antes da análise das amostras de muco, o óleo mineral era retirado pela imersão das mesmas em éter de petróleo.

A temperatura do laboratório onde as amostras permaneciam armazenadas era mantida em aproximadamente 20 °C, porém não foi realizado controle da umidade relativa do ar.

Uma amostra de muco de cada indivíduo foi analisada entre 1 e 2 h após a coleta e novamente analisada após a sua permanência em temperatura ambiente por 24 h. O muco mucóide, devido à pequena quantidade coletada, foi avaliado somente quanto à transportabilidade por ação ciliar e ao ângulo de contato. O muco purulento foi estudado em relação ao ângulo de contato e à transportabilidade por ação ciliar e por tosse.

O ângulo de contato do muco foi medido de acordo com o método descrito por Girod et al.,(4) imediatamente após a sua deposição sobre a lâmina. Foram realizadas cinco medidas de ângulo de contato e foi calculada sua média.

A transportabilidade por ação ciliar foi avaliada pelo método do palato de rã.(6,14) Foi utilizado o palato isolado de rãs da espécie Rana catesbeiana. Para cada amostra, utilizaram-se cinco medidas do tempo despendido para as amostras percorrerem 6 mm no palato de rã. A velocidade do muco foi expressa como velocidade relativa, a qual consiste na média da velocidade do muco teste dividida pela média da velocidade do muco da rã, utilizado como controle.

A transportabilidade por tosse foi estudada com uma máquina simuladora de tosse desenvolvida por King et al.(15) e adaptada por Gastaldi et al.,(6) com as seguintes características: pressão do oxigênio de 4,2 kgf/cm2; tempo de abertura da válvula solenóide de um segundo; tubo cilíndrico de acrílico com 4 mm de diâmetro interno e 30 cm de comprimento. Para cada amostra de muco foram realizadas cinco medidas de deslocamento, expressas com sua média.

Os resultados foram analisados pelo teste de Wilcoxon, considerando-se um nível de significância de 5%. Apesar de ser utilizada estatística não paramétrica, optou-se por descrever os dados com média e desvio padrão, para facilitar a compreensão dos resultados.

Resultados

Neste trabalho observou-se que não houve diferença estatisticamente significativa entre as amostras de muco mucóide analisadas em torno de 1 e 2 h após a coleta e aquelas analisadas após permanência de 24 h em temperatura ambiente, tanto para a transportabilidade por ação ciliar (média e desvio padrão: 0,87 ± 0,19 vs. 0,9 ± 0,2, respectivamente), quanto para o ângulo de contato (média e desvio padrão: 26 ± 3 vs. 23 ± 3 graus, respectivamente) (Figura 1).





Em relação ao muco purulento, não houve diferença estatisticamente significativa para a transportabilidade por ação ciliar (média e desvio padrão: 0,72 ± 0,24 vs. 0,69 ± 0,19, respectivamente), mas houve um aumento no deslocamento na máquina simuladora de tosse (média e desvio padrão: 96 ± 50 vs. 118 ± 61 mm, respectivamente) (p < 0,05) e diminuição nos valores dos ângulos de contato (média e desvio padrão: 32 ± 6 vs. 27 ± 6 graus, respectivamente) (p < 0,05) (Figura 2). Os cálculos estatísticos foram realizados somente com 19 amostras dos 20 pacientes estudados, pois uma delas tornou-se liquefeita 24 h após sua coleta, o que impossibilitou sua análise. Além disso, todas as amostras de muco purulento mostraram diminuição em sua consistência, ou seja, tornaram-se mais fluidas, dificultando seu manuseio.






Discussão

No presente estudo, não houve alteração estatisticamente significativa na transportabilidade por ação ciliar e no ângulo de contato do muco mucóide após a sua permanência em temperatura ambiente durante 24 h. Acreditamos que a não alteração das propriedades do muco se deva ao pequeno número de células inflamatórias, bactérias e enzimas presentes no muco de indivíduos sem doença pulmonar,(16) além do fato de o método utilizado para a coleta ocasionar pouca contaminação com saliva.

No entanto, o muco purulento não apresentou alterações somente na transportabilidade por ação ciliar, mas houve diminuição estatisticamente significativa nos valores do ângulo de contato e aumento do deslocamento na máquina simuladora de tosse 24 h após a coleta (p < 0,05). Isto indica um efeito degenerativo na estrutura do muco, confirmado pela diminuição em sua consistência. Alguns autores(17) associaram a liquefação do muco, armazenado em temperatura ambiente, à atividade enzimática. Confirmando este preceito, outros autores(18) observaram que a a-naftil acetato esterase, presente nos macrófagos alveolares de escarro, secreções brônquicas e lavados alveolares, apesar de mostrar perda progressiva da atividade após 24 h em temperatura ambiente, ainda apresentava alguma função após 72 h.

Sabe-se que o muco de pacientes bronquiectásicos possui um grande número de enzimas, principalmente proteases neutrofílicas.(19) Portanto, apesar de não se ter avaliado a atividade enzimática das amostras do presente estudo, acredita-se que as alterações do muco purulento tenham ocorrido por ação de enzimas liberadas pela lise de leucócitos e bactérias sobre a rede de mucinas. Um exemplo de enzimas liberadas no muco por bactérias é a metaloproteína elastase, derivada da Pseudomonas aeruginosa.(20)

Em conclusão, o muco traqueobrônquico mucóide pode ser mantido em temperatura ambiente por 24 h, sem que ocorra alteração na sua transportabilidade por ação ciliar ou no seu ângulo de contato. O muco traqueobrônquico purulento, no entanto, não deve permanecer em temperatura ambiente por muitas horas, pois sofre alterações em suas propriedades físicas, podendo tornar-se liquefeito. Entretanto, como não foram realizadas análises intermediárias entre 2 e 24 h após a coleta, futuros estudos precisam ser feitos para se determinar qual o tempo máximo em que o muco purulento pode permanecer em temperatura ambiente, para se evitar alterações em sua estrutura e, conseqüentemente, em sua transportabilidade.

Referências

1. Albertini-Yagi CS, Oliveira RC, Vieira JE, Negri EM, de Oliveira LR, Saldiva PH, et al. Sputum induction as a research tool for the study of human respiratory mucus. Respir Physiol Neurobiol. 2005;145(1):101-10.

2. Deneuville E, Perrot-Minot C, Pennaforte F, Roussey M, Zahm JM, Clavel C, et al. Revisited physicochemical and transport properties of respiratory mucus in genotyped cystic fibrosis patients. Am J Respir Crit Care Med. 1997;156(1):166-72.

3. Valente AM, Gastaldi AC, Cravo SL, Afonso JL, Sologuren MJJ, Guimarães RC. The effect of two techniques on the characteristics and transport of sputum in patients with bronchiectasis. A pilot study. Physiotherapy. 2004;90(2):158-64.

4. Girod S, Zahm JM, Plotkowski C, Beck G, Puchelle E. Role of the physicochemical properties of mucus in the protection of the respiratory epithelium. Eur Respir J. 1992;5(4):477-87.

5. Zayas JG, Man GC, King M. Tracheal mucus rheology in patients undergoing diagnostic bronchoscopy. Interrelations with smoking and cancer. Am Rev Respir Dis. 1990;141(5 Pt 1):1107-13.

6. Gastaldi AC, Jardim, King M. The influence of temperature and length of time of storage of frog mucus samples. Biorheology. 2000;37(3):203-11.

7. Denton R. Bronchial obstruction in cystic fibrosis: rheological factors. Pediatrics. 1960;25:611-20.

8. Puchelle E, Tournier JM, Zahm JM, Sadoul P. Rheology of sputum collected by a simple technique limiting salivary contamination. J Lab Clin Med. 1984;103(3):347-53.

9. Sturgess J, Palfrey AJ, Reid L. Rheological properties of sputum. Rheol Acta. 1971;10(1):36-43.

10. Charman J, Reid L. Sputum viscosity in chronic bronchitis, bronchiectasis, asthma and cystic fibrosis. Biorheology. 1972;9(3):185-99.

11. Wong LK, Barry AL, Horgan SM. Comparason of six different criteria for judging the acceptability of sputum specimens. J Clin Microbiol. 1982;16(4):627-31.

12. Rubin BK, Ramirez O, Zayas JG, Finegan B, King M. Collection and analysis of respiratory mucus from subjects without lung disease. Am Rev Respir Dis. 1990;141(4 Pt 1):1040-3.

13. King M, Macklem PT. Rheological properties of microliter quantities of normal muçus. J Appl Physiol. 1977;42(6):797-802.

14. Sade J, Eliezer N, Silberberg A, Nevo AC. The role of mucus in transport by cilia. Am Rev Respir Dis. 1970;102(1):48-52.

15. King M, Brock G, Lundell C. Clearance of mucus by simulated cough. J Appl Physiol. 1985; 58(6):1776-82.

16. Lundgren JD. Mucus production in the lower airways: a review of experimental studies. Dan Med Bull. 1992;39(4):289-303.

17. Blasi A, Olivieri D. Conteúdo enzimático das secreções. In: Blasi A, Olivieri D. Hipersecreção brônquica: fisiopatologia, clínica, terapia. São Paulo: Andrei; 1982. p. 33-47.

18. Wehle K, Pfitzer P. Nonspecific esterase activity of human alveolar macrophages in routine cytology. Acta Cytol. 1988;32(2):153-8.

19. Fahy JV, Schuster A, Ueki I, Boushey HA, Nadel JA. Mucus hypersecretion in bronchiectasis: the role of neutrophil proteases. Am Rev Resp Dis. 1992;146(6):1430-3.

20. Mandl I, Keller S, Cohen B. Microbial elastases: A comparative study. Proc Soc Exp Biol Med. 1962;109:923-5.
__________________________________________________________________________________________
* Trabalho realizado no Laboratório de Muco da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP) Brasil.
1. Doutora em Patologia Molecular da Universidade de Brasília - UnB - Brasília (DF) Brasil.
2. Doutora em Ciências da Saúde da Universidade Católica de Brasília - UCB - Brasília (DF) Brasil.
3. Professora Doutora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FMRPUSP - Ribeirão Preto (SP) Brasil.
4. Professor Associado de Pneumologia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Renata Claudia Zanchet. Universidade Católica de Brasília, Núcleo de Reabilitação Cardiopulmonar. Sala A004, QS 07, lote 01,
Águas Claras - CEP 71966-700, Taguatinga, DF, Brasil. Tel 55 61 3356-9005. E-mail: renatazanchet@ucb.br
Recebido para publicação em 4/10/05. Aprovado, após revisão, em 17/5/06.



Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia