INTRODUÇÃO
A relação entre as exposições ocupacionais e o aparecimento de doenças já é conhecida desde a antiguidade. A primeira publicação descrevendo a associação entre o trabalho de mineração e a manifestação de doença respiratória data de 1556, a obra De Re metállica, de Georg Bauer.(1) Bernardino Ramazzini, considerado o pai da medicina do trabalho, publicou na Itália, em 1700, o livro De morbis artificum diatriba, no qual descreve, com extrema clareza e perfeição, 54 doenças relacionadas ao trabalho e introduz na anamnese clínica uma simples pergunta: "Qual é a sua ocupação?".(2)
Desde então, inúmeros estudos foram realizados evidenciando essa relação causal tão expressiva e ainda hoje pouco valorizada em nossas anamneses. Essa evidência causal pode ser melhor compreendida se considerarmos que o aparelho respiratório, com cerca de 100 metros quadrados de superfície de contato, constitui a principal interface entre o nosso meio interno e o externo e, sabendo-se que um adulto inala entre 7 a 12 mil litros de ar por dia, contendo milhares de agentes aerodispersóides, podemos estimar as repercussões deletérias decorrentes dessas interações. A American Thoracic Society considera que as exposições ambientais e ocupacionais podem ser responsáveis por até 20% das doenças intersticiais e das vias aéreas.(3)
No mesmo sentido, devemos considerar que as discussões sobre a degradação do meio ambiente, poluição atmosférica e efeito estufa, entre outros tópicos, enfocam a emissão de substâncias químicas sabidamente causadoras de agravos à saúde e sua estreita associação com o aumento da morbimortalidade, especialmente entre os portadores de doenças respiratórias crônicas. Com esse enfoque, a American Thoracic Society, visando ao aprimoramento do conhecimento sobre esse tema, promoveu, em 2000, o Workshop on Lung Disease and Environment, onde procurou discutir e planejar ações que pudessem avaliar o impacto desses fatores em nível populacional, individual, celular e molecular, principalmente em relação às doenças intersticiais e da vias aéreas.(4)
Dessa forma, enfatizando a relevância do tema, obrigamo-nos a refletir sobre a necessidade da obtenção de informações precisas e detalhadas sobre as exposições ambiental e ocupacional, visando à elucidação diagnóstica, melhor prognóstico e elaboração de medidas de prevenção e controle.
Infelizmente, fatores adversos como a formação inadequada do médico, atribuições ou atribulações do dia a dia que desembocam na falta de tempo, ou simplesmente por não se considerar o ambiente ou o trabalho como fator deletério à saúde humana, a grande maioria das anamneses ou fichas médicas não contempla dados mínimos de história ambiental ou ocupacional. Quantas vezes deixamos de perguntar aos nossos pacientes: "qual é o seu trabalho/ocupação/função?; há quanto tempo realiza essa atividade?; existe alguma substância nociva/tóxica ou passível de risco inalatório no seu ambiente de trabalho?". Numa avaliação de 625 fichas médicas de atendimento primário em um hospital de instituição acadêmica, 24% não mencionavam nenhum dado relativo à ocupação dos pacientes, e em apenas 2% havia referência a agentes tóxicos no trabalho atual ou anterior.(5)
Para um efetivo entendimento da relação entre a exposição e os eventuais agravos à saúde é necessário entender, mesmo que parcialmente, o processo de trabalho. Este deve ser considerado amplamente desde o recebimento e armazenamento dos insumos ou matérias-primas utilizados na produção até o produto final e sua expedição. O fluxo de produção deve ser detalhado a fim de se reconhecer possíveis etapas intermediárias que possam gerar riscos inalatórios específicos nem sempre reconhecidos e relatados pelos trabalhadores que, na maioria das vezes, desconhecem as substâncias utilizadas no processo produtivo. Cabe aos profissionais da saúde reconhecer e avaliar os eventuais riscos inalatórios através de visitas aos locais de trabalho, solicitações de informações junto ao empregador, sindicato, ou em relatórios de avaliação da exposição realizados previamente sobre os produtos utilizados em todas as fases operacionais. Uma detalhada descrição das atividades produtivas, substâncias envolvidas no processo e seus efeitos em relação à saúde está disponibilizada na
Enciclopédia de Saúde e Segurança do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho.(6) O uso de equipamentos de proteção individual, especialmente as máscaras ou respiradores, deve ser observado cautelosamente pois, na grande maioria das situações, eles oferecem proteção parcial devido a sua utilização de forma inadequada, conseqüente à falta de treinamento adequado, indisciplina e falta de motivação, entre tantos outros fatores responsáveis pela baixa efetividade desses dispositivos. A utilização de medidas de proteção coletiva deve ser avaliada em relação à sua adequação e eficácia e, quando inexistente, deve ser incentivada, reservando-se o uso de equipamentos de proteção individual para situações especiais.
ABORDAGENS ESPECÍFICAS
Latência
Há dois grandes grupos de doenças que podem ser classificadas em relação ao tempo de latência, aqui entendido como o período de tempo decorrente entre o início da exposição e o diagnóstico. No primeiro consideramos as doenças com longo período de latência, em que destacamos as pneumoconioses e o câncer de pulmão, caracterizadas pela inalação de agentes específicos e dependentes da exposição cumulativa ou da relação dose-dependente, resultante do tempo de exposição e da concentração do agente na fração respirável. No segundo grupo destacamos as doenças com curto período de latência, causadas por agentes irritantes ou sensibilizantes, sendo as mais freqüentes a disfunção reativa das vias aéreas, a asma ocupacional e a pneumonite por hipersensibilidade.
A exposição a esses agentes por curtos períodos é suficiente para o desencadeamento dessas doenças, o que exige uma investigação detalhada sobre possíveis atividades pregressas, em que essas substâncias podem ter sido utilizadas, caracterizando sensibilizações prévias. Além do período de latência, é necessário avaliar a relação dos sintomas respiratórios com o horário de trabalho, fatores de melhora e de piora, e agentes ambientais e domésticos.(7)
Avaliação da exposição cumulativa
A exposição pode ter começado na infância, decorrente de fatores ambientais ou domésticos, através de substâncias trazidas pelos adultos em suas roupas ou armazenadas nas casas com finalidade comercial. Também por o indivíduo residir nas cercanias de afloramentos naturais de minerais ou nas imediações de instalações industriais, torna-se possível a relação causal. A associação entre doenças asbesto relacionadas e a exposição ambiental é relatada em estudos específicos.(7)
Para uma adequada caracterização da exposição cumulativa é necessário um detalhamento de todas as ocupações pregressas e atuais, visando a qualificar e, quando possível, quantificar a dose ou carga de exposição ao agente em estudo. A análise de relatórios de avaliação ambiental e a visita ao local de trabalho com equipe especializada em higiene ocupacional para a identificação e avaliação do risco inalatório são elementos fundamentais para a devida avaliação da exposição cumulativa.
Infelizmente, estes procedimentos só muito recentemente vêm sendo implementados em alguns dos nossos setores produtivos. As instituições públicas responsáveis pela fiscalização, controle e avaliação dos ambientes de trabalho carecem de recursos humanos e materiais para uma plena execução das suas atividades, o que proporciona condições para o descumprimento da legislação específica. Por tratar-se de campo de atuação multiprofissional sugerimos, aos que pretendem ampliar seus conhecimentos sobre o assunto, consultas a fontes de informações de reconhecimento internacional.(8-10)
Especiação
Este termo designa uma forma física específica de uma substância, freqüentemente química. Em algumas exposições ocupacionais, uma mesma substância química pode causar doença ou não, dependendo da sua apresentação. Podemos citar o níquel e o cromo que, na forma metálica, não causam câncer de pulmão, enquanto que na forma de sulfeto ou fumo metálico para o níquel e de cromo hexavalente para o cromo são carcinogênicos para o pulmão. Outro exemplo são os sais de platina que em sua forma de hexacloroplatinato de amônia são sabidamente causadores de asma ocupacional por sensibilização, enquanto que como tetramino dicloreto de platina não são agentes sensibilizantes.(7)
Exposições adicionais
Freqüentemente os trabalhadores são remanejados para outras funções temporárias atendendo ao remanejamento de produção e, nestas ocasiões, podem permanecer expostos a agentes diferentes dos da sua função habitual. Às vezes são remanejados para diversas outras funções, com exposições a vários outros fatores de risco inalatórios, geralmente não comentados ou descritos corretamente. Algumas doenças ocupacionais podem ser desencadeadas ou agravadas pela exposição a substâncias que são usadas ocasionalmente na linha de produção, tais como solventes nas atividades de manutenção, pintura e limpeza de peças, colofônio para soldas especiais, rebolos de abrasivos para ferramentas ou peças especiais, entre outras. As eventuais exposições adicio-nais devem ser consideradas na história ocupacional pois, freqüentemente, as informações sobre os produtos utilizados na produção e os seus efeitos tóxicos são desconhecidos ou negligenciados. Nos EUA, menos de 20% das indústrias químicas testaram os seus produtos em relação à toxicidade em humanos.(11)
Consideramos oportuno destacar as substâncias sabidamente conhecidas como carcinogênicas para o ser humano, classificadas no grupo 1 da Agência Internacional para Pesquisas em Câncer,(12) como o arsênico, níquel, cromo, cádmio, sílica, asbesto, carvão, cloreto de vinila, entre outras e, também, o efeito sinérgico multiplicativo do consumo tabágico, sobejamente conhecido em relação a sua associação com neoplasias, doenças pulmonares crônicas e cardiovasculares.
TÓPICOS PARA A ELABORAÇÃO SISTEMATIZADA DA HISTÓRIA OCUPACIONAL
Consideramos que a história de exposição a agentes ambientais ou ocupacionais deve ser incorporada à rotina de atendimento e sugerimos o seguinte roteiro, simplificado, compilado e adaptado em relação aos originais e também já apresentado em outras publicações.
Abordagem clínica inicial
- Qual é o seu trabalho/ocupação/atividade principal e há quanto tempo vem exercendo?
- Quais outras ocupações exercidas e há quanto tempo?
- Seus sintomas relacionam-se com suas atividades no trabalho, na sua casa, no ambiente em geral, ou nas atividades paralelas, como bicos ou hobby?
- Você já esteve exposto a poeiras, fumos, gases ou vapores? Especifique.
Abordagem clínica especializada
- Cronologia das ocupações/trabalhos;
- Descrição detalhada da ocupação principal;
- Descrição de outras ocupações mesmo que ocasionais;
- Associação com exposições específicas ou potenciais;
- Estimativa da exposição cumulativa;
- Conhecimento de trabalhadores com doenças relacionadas à exposição.
Esta abordagem, entendida como uma avaliação da exposição, deve proporcionar hipóteses diagnósticas relacionadas ou não com o trabalho. Quando se evidencia uma estreita associação com a exposição ambiental ou ocupacional, torna-se imprescindível um detalhamento do risco inalatório.
HISTÓRIA OCUPACIONAL E SAÚDE PÚBLICA
Entendemos como de fundamental importância para o real dimensionamento da magnitude do problema relativo às doenças respiratórias ambientais e ocupacionais que, no atendimento básico à saúde, do Sistema Único de Saúde, os profissionais devem estar devidamente capacitados para, pelo menos, reconhecer a possível etiologia ou o eventual risco inalatório inerente a essas doenças. Os indivíduos com suspeita de doenças respiratórias ambientais e ocupacionais devem ser encaminhados para centros referenciados a fim de se proceder a eventual caracterização diagnóstica, sua notificação e seguimento ambulatorial. A identificação de casos dessas doenças permite reconhecer o evento sentinela e, baseado nesse dado epidemiológico, proceder à investigação sistemática através da informação sobre a ocorrência de outros casos semelhantes.
Outra questão de saúde publica em relação ao risco inalatório relaciona-se com o grande número de indivíduos expostos à combustão de biomassa. Os fogões a lenha para o cozimento dos alimentos e a queima da palha da cana-de-açúcar são dois exemplos de exposição doméstica, ocupacional e ambiental ao risco inalatório. O aumento dos atendimentos por sintomas respiratórios nos períodos de incremento da poluição ambiental e na safra da cana-de-açúcar, em nosso meio, foi analisado em estudo recente.(13) O aumento nos atendimentos de exacerbações respiratórias, especialmente de asma, pneumopatias crônicas e rinossinusopatias, foi observado entre bombeiros e residentes próximos a incêndios florestais ou em zonas agricultáveis.(14)
Apresentamos, a título complementar, um roteiro que contempla os elementos essenciais a serem enfocados na elaboração de uma história de exposição ambiental e ocupacional nos mais variados níveis de atenção à saúde da população.
HISTÓRIA DE EXPOSIÇÃO AMBIENTAL E OCUPACIONAL - ELEMENTOS ESSENCIAIS
Sobre o trabalho habitual ou os mais recentes
- Nome da ocupação, ramo ou tipo da indústria e nome da empresa;
- Início e término da exposição;
- Descrição detalhada da ocupação (dia de trabalho típico); comentar eventuais outros riscos potenciais;
- Horas de trabalho, horas extras, mudanças de turno;
- Exposições permanentes ou eventuais a poeiras, fumos, radiações, produtos químicos, materiais biológicos ou agentes físicos;
- Uso de equipamentos de proteção individual e descrição de proteção coletiva;
- Problemas de saúde evidenciados em outros trabalhadores.
Sobre ocupações pregressas
- Cronologia de outras ocupações, destacando período, tipo, tempo de exposição e risco ocupacional eventual;
- Quando necessário, detalhar conforme roteiro anterior.
Sobre a exposição ambiental
- Domicílio, trajeto, lazer ou atividades nas cercanias de afloramentos naturais de minerais ou de instalações industriais com dispersão de aerodispersóides;
- Regiões com elevados índices de poluição;
- Lavagem de roupas usadas no trabalho.
Acreditamos que, com uma informação detalhada sobre a história de exposição ambiental e ocupacional, seguramente serão melhorados os nossos indicadores dessa morbidade específica e poder-se-á estabelecer diretrizes de prevenção e controle, e estimativas de custo econômico e social dessas doenças. Acreditamos, também, que uma atuação conjunta dos órgãos governamentais, universidades e sociedades médicas envolvidos nessa temática pode promover a capacitação dos profissionais da saúde melhorando as condições para um diagnóstico precoce, o qual é decisivo em relação ao prognóstico e ao equacionamento desse problema em nosso meio.
REFERÊNCIAS
1. Agrícola G (1555) De re metallica. Translated by H Hoover and L H Hoover, New York, Dover Publications, Inc, 1950 edition.
2. Ramazzini, B. A doença dos trabalhadores. Tradução brasileira do "De morbis artificum diatriba"por Estrela R. Fundacentro, São Paulo, 1999.
3. American Thoracic Society. Basics of Occupational Lung Diseases. ATS, 1999 Update.
4. American Thoracic Society Documents. Workshop on Lung Disease and the Environmental: Where Do We Go from Here?. Am J Respir Crit Care Med 2003;168:250-4.
5. Agency for Toxic Substances and Diseases Registry - ATSDR. Obtaining an exposure history. Am Fam Physician, 1993;48:483-91.
6. International Labor Office - ILO. Encyclopaedia of Occupational Health and Safety, 4a. Ed. Geneve, ILO, 1998.
7. Burge PS. How to take an occupational exposure history relevant to lung disease. In: Hendrick DJ, Burge PS, Beckett WS, Churg A, Eds. Occupational disorders of the lung, 1st ed, London: WB Saunders 2002;3:24-9.
8. Goelzer BIF. A Contribuição da Higiene Ocupacional para a Redução e Eliminação da Nocividade do Trabalho. In: Mendes R, Ed, Patologia do Trabalho 2 ed, São Paulo, Atheneu,2003;44:1741-66.
9. Harber P, Levin M, Weinberg J, Oversier J. Industrial Hygienist as a Clinical Consultant. Am J Ind Med 1994;26:339-47.
10. American Conference of Governamental Industrial Hygienists - ACGIH. 2003 Threshold Limits Values and Biological Exposure. Limites de Exposição (TLVs) para Substâncias Químicas e Agentes Físicos e Índices Biológicos de Exposição (BELs). Versão para o Português pela Associação Brasileira de Higienistas Ocupacionais - ABHO, São Paulo, SP, 2003; 219 pgs.
11. Newman LS. Occupational illness. N Eng J Med 1995; 333:1128-34.
12. International Agency for Research or Câncer. Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans. Overall evaluation of carcinogenicity to humans as evaluated in IARC monographs volumes 1-77. Lyon: IARC, 2000.
13. Arbex MA, Cançado JED, Pereira LAA, Braga ALF, Saldiva PHN. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J Bras Pneumol, 2004;30:158-75.
14. Singh N, Davis GS. Review: occupational and environmental lung disease. Curr Opin Pulm Med, 2001;8:117-25.
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* Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
1. Professor Assistente Doutor da Área de Saúde Ocupacional do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciência Médicas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Ericson Bagatin. Rua Borges Lagoa, 564, cj. 81/82, Vila Clementino - CEP 04038-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ebagatin@fcm.unicamp.br