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Hipertensão pulmonar e esclerose sistêmica

2005 - Vol.31 - Supplement 2

CONCEITO E PROGNÓSTICO

A esclerose sistêmica (ES), forma generalizada da esclerodermia, é uma doença inflamatória crônica do tecido conjuntivo caracterizada por fibrose acometendo pele e vísceras. Apresenta predomínio no sexo feminino (3-8:1), não existindo predileção por raça, e costuma iniciar-se entre a terceira e a sexta décadas de vida.(1) Caracteris-ticamente, pode ser subdividida em duas formas clínicas: limitada e difusa. A esclerose sistêmica limitada apresenta envolvimento cutâneo restrito às extremidades (até cotovelos e joelhos), ritmo lento de acometimento cutâneo, presença de calcinose, contraturas articulares pouco freqüentes, incidência tardia de manifestações viscerais, e pode cursar com anticorpo anticentrômero. A esclerose sistêmica difusa cursa com envolvimento cutâneo generalizado afetando tronco, face e membros, apresenta tendência a rápida progressão das alterações cutâneas, contraturas articulares, crepitação tendínea e comprometimento visceral precoce (fibrose pulmonar, miocardiosclerose e crise renal), podendo cursar com anticorpo antitopoisomerase I (anti-Scl 70).(2) A sobrevida média na ES é de 70% a 90% em cinco anos e de 60% a 80% em dez anos. Dentre os fatores de mau prognóstico, destacam-se o sexo masculino, a cor negra, o acometimento cutâneo difuso e o acometimento visceral (notadamente fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar, miocardios-clerose, pericardite aguda sintomática e crise renal esclerodérmica).(3)

ACOMETIMENTO PULMONAR

Dentre os órgãos internos acometidos na ES, o pulmão é atualmente a principal causa de óbito. O envolvimento pulmonar na ES pode manifestar-se como fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar, doença pleural, pneumonia aspirativa e neoplasia. A hipertensão arterial pulmonar (HAP) é observada em 5% a 50% dos pacientes, dependendo do método utilizado para a investigação, podendo ser um achado isolado ou estar associada à fibrose pulmonar; na ES limitada, pode representar manifestação isolada. Geralmente, os sinais e sintomas relacionados à HAP na ES são insidiosos, principalmente em suas fases iniciais; em alguns casos, principalmente na HAP isolada da ES limitada, apresentam-se como dispnéia rapida-mente progressiva aos esforços, evoluindo com insuficiência cardíaca direita e cor pulmonale, com sobrevida de 10% em cinco anos.(4) Nos casos de HAP isolada inicial, o radiograma de tórax e a prova de função pulmonar mostram-se normais, e ela pode cursar com diminuição isolada da difusão de monóxido de carbono.(5) O ecocardiograma com Doppler tem-se mostrado o método não invasivo mais eficiente para a aferição da pressão em artéria pulmonar na ES, com sensibilidade de 90% e especificidade de 75%, através de medidas indiretas pelo jato de regurgitação tricúspide, considerando valores anormais para pressão sistólica de artéria pulmonar (PSAP) os maiores que 30 mmHg.(6) O cateterismo cardíaco é o método diagnóstico considerado mais fidedigno para avaliar a prevalência da HAP na ES, mas é um método invasivo e não tão facilmente acessível como o ecocardiograma com Doppler. Embora o último Consenso de Hipertensão Pulmonar (Veneza - Itália, 2003) tenha fixado o valor de 40 mmHg da PSAP como valor de referência, é observada a ocorrência de sintomas de HAP em pacientes com a PSAP entre 35 e 40 mmHg.(7-9) Um estudo recente, avaliando ecocardiograma com Doppler e prova de função pulmonar como testes de screening para cateterismo cardíaco em 137 pacientes com ES, mostrou boa correlação entre o gradiente tricúspide > 45 mmHg ao ecocardiograma e o achado de HAP no cateterismo cardíaco.(10) Devido à sua crescente prevalência, é importante se realizar a pesquisa sistemática da HAP, através de ecocardiograma com Doppler anual, em todos os pacientes esclero-dérmicos, inclusive naqueles com ES limitada e longa evolução da doença, a fim de tentar otimizar o tratamento.

A ESCLEROSE SISTÊMICA COMO UM MODELO PRIVILEGIADO PARA O TRATAMENTO PRECOCE DA HIPERTENSÃO PULMONAR

Um dos grandes problemas no tratamento da HAP idiopática é o fato de que as manifestações clínicas que evocam o seu diagnóstico se fazem presentes numa fase relativamente tardia da doença, quando as modalidades terapêuticas atuais têm eficácia relativa. É possível que o tratamento da HAP seja mais efetivo quando iniciado precocemente, na ausência das alterações estruturais verificadas nas fases avançadas da doença. No entanto, o rastreamento da HAP em toda a popu-lação, a fim de detectar os casos precoces, é total-mente inviável, devido à baixa prevalência da doença na população geral. Já na ES, em virtude da ocorrência de HAP em parcela significativa de pacientes, torna-se justificável e desejável o monitoramento periódico destes pacientes, com o intuito de identificar seu surgimento nas fases precoces da doença, ainda assintomáticos ou com sintomatologia pouco expressiva. Embora a ocor-rência de HAP esteja definida quando os níveis de PSAP sejam superiores a 40 mmHg, é importante que também se faça a monitoração dos pacientes esclerodérmicos que apresentam níveis de PSAP entre 31 e 40 mmHg. A Figura 1 apresenta o algo-ritmo sugerido para a investigação de hipertensão pulmonar nos pacientes portadores de esclerose sistêmica.

TRATAMENTO DA HIPERTENSÃO PULMONAR NA ESCLEROSE SISTÊMICA

Até pouco tempo atrás, as opções terapêuticas disponíveis para o tratamento da HAP associada à ES limitavam-se às intervenções com o objetivo exclusivo de controle dos sintomas. O tratamento com drogas vasodilatadoras, como os bloqueadores dos canais de cálcio (especialmente a nifedipina), mostra-se eficaz num número reduzido de pacientes.(11) A oxigenoterapia auxilia na melhora da qualidade de vida e na redução da vasoconstrição induzida pela hipóxia.(12) O tratamento da insuficiência cardíaca congestiva é feito da maneira convencional.(4) Pacientes com hipertensão pulmonar em fase terminal podem se beneficiar de transplante coração-pulmão;(13) no entanto, a disponibilidade de doadores e a natureza sistêmica da ES contribuem para tornar esta opção bastante restrita.

Nos últimos anos, têm sido divulgados estudos avaliando novos agentes farmacológicos, como os análogos da prostaciclina e os antagonistas dos receptores da endotelina, que visam não só a estabelecer um melhor controle dos sintomas relacionados à HAP, mas também a atuar como modificadores desta manifestação da ES. Dentre os análogos da prostaciclina, destacam-se o epoprostenol, o iloprost e o treprostinil. Estudo randomizado avaliando pacientes com ES e HAP moderada a grave, submetidos a tratamento convencional ou tratamento convencional associado ao uso do epoprostenol em infusão endovenosa contínua por doze semanas, mostrou melhora significativa da tolerância ao exercício (teste da caminhada de seis minutos) e da hemodinâmica cardiopulmonar (variação na medida da pressão pulmonar arterial média e da resistência vascular pulmonar), além da classe funcional da dispnéia, no grupo epoprostenol.(14) Os efeitos colaterais do epoprostenol foram dor na mandíbula, náuseas e anorexia; no entanto, os principais problemas estiveram relacionados ao sistema de infusão endovenosa contínua da droga, como sepses, celulite local, hemorragia e pneumotórax.

O iloprost, utilizado na forma de aerossol (dose total: 100mg/dia, dividida em seis inalações), mostrou-se eficiente, em estudo piloto com poucos pacientes com ES e HAP grave, na obtenção de melhora na classe funcional da dispnéia, no teste de caminhada de seis minutos e na média da PSAP, melhora esta mantida por até dois anos; não foram observados efeitos adversos significativos, nem houve necessidade de se aumentar a dose diária do iloprost.(15) Atualmente, encontra-se em andamento um estudo mais extenso, com maior número de pacientes em uso de iloprost para avaliação da HAP na ES.

O uso do treprostinil, em infusão subcutânea contínua, comparado ao placebo, mostrou-se eficiente no tratamento da HAP secundária às doenças do tecido conjuntivo, por doze semanas. Houve melhora significativa na tolerância ao exercício, bem como nos índices de dispnéia e nos sinais e sintomas de HAP no grupo treprostinil; estas melhoras foram dose-dependentes.(16) Seu principal efeito colateral está relacionado à dor e à inflamação no sítio de infusão contínua.

O único antagonista da endotelina aprovado para uso na ES é a bosentana, um antagonista dos receptores A e B, utilizado em doses de 125 a 250 mg/dia. Estudo inicial, destinado à avaliação da administração da droga por doze semanas na HAP (idiopática ou associada à ES), revelou uma melhora na tolerância ao exercício e na hemodinâ-mica (índice cardíaco e resistência vascular pulmonar). A extensão aberta do estudo, pelo prazo de um ano, revelou manutenção das melhoras observadas nas primeiras semanas.(17) Deve-se ter especial atenção à função hepática durante o uso desta droga. A bosentana está sendo também estudada para que seja avaliado seu efeito sobre a cicatrização e a diminuição da recidiva de úlceras isquêmicas agudas, e sobre o controle da fibrose pulmonar na ES.

Outros antagonistas dos receptores da endotelina, ainda em estudo quanto ao seu uso na ES, são o sitaxsentan e o ambrisentan.

Outras perspectivas para o tratamento da HAP na ES são o óxido nítrico inalatório, e o sildenafil. Porém, estudos controlados são necessários para avaliar sua real eficácia. Em perspectiva, tem sido considerada também a possibilidade da associação de diferentes classes terapêuticas, como, por exem-plo, inibidores da endotelina e da fosfodiesterase V.

REFERÊNCIAS

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