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Artigo Original

Avaliação da assistência ao paciente asmático no Sistema Único de Saúde

Evaluation of the treatment provided to patients with asthma by the Brazilian Unified Health Care System

Carla Discacciati Silveira, Flávia de Barros Araújo, Luiz Fernando Ferreira Pereira, Ricardo de Amorim Corrêa

ABSTRACT

Objective: To determine, based on international guidelines for asthma management, the appropriateness of the treatment that the Unified Health Care System provides to patients with asthma. Methods: This was a cross-sectional study involving patients suspected of having asthma and referred to the Pulmonology Clinic of the Federal University of Minas Gerais Hospital das Clínicas, Brazil, between November of 2006 and October of 2007. Results: A total of 102 patients were included, and 70 were diagnosed with asthma. The previous treatment was consistent with the guidelines in 18.6% of the patients; 50.0% of the patients had previously been submitted to spirometry, and 34.3% had previously been submitted to PEF. The most frequently prescribed medication was short-acting β2 agonists (90.3%). Conclusions: The results show that the majority of non-specialized physicians working within the public health care system do not manage the treatment of patients with asthma in accordance with the guidelines. This situation calls for continuing medical education programs that prioritize primary care.

Keywords: Asthma; Guideline adherence; Therapeutics; Public health.

RESUMO

Objetivo: Verificar a adequação da assistência médica prestada a pacientes asmáticos do Sistema Único de Saúde de acordo com diretrizes internacionais para o manejo da asma. Métodos: Estudo transversal, incluindo pacientes com suspeita de asma e encaminhados para o Serviço de Pneumologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais entre novembro de 2006 e outubro de 2007. Resultados: Foram incluídos 102 pacientes, e 70 confirmados como asmáticos. A assistência médica anterior foi considerada adequada em 18,6% dos pacientes; 50,0% dos asmáticos já haviam realizado espirometria previamente e 34,3%, manobra de PFE. A medicação mais utilizada foi o β2-agonista de curta duração (90,3%). Conclusões: Os resultados indicam que o manejo de pacientes asmáticos pela maioria dos médicos não-especialistas do sistema público de saúde está em desacordo com as diretrizes, sendo necessários programas de educação médica continuada, priorizando o nível de atenção primária.

Palavras-chave: Asma; Fidelidade a diretrizes; Terapêutica; Saúde pública.

Introdução

A asma é uma doença inflamatória crônica das vias aéreas, com prevalência de 2-26% no Brasil e na América Latina, acarretando um impacto significativo em termos de morbidade, de qualidade de vida e de recursos gastos no seu tratamento, principalmente em casos não-­controlados.(1) No Brasil, representa a quarta causa de hospitalização pelo Sistema Único de Saúde, tendo sido responsável por 329.182 internações em 2004.(2)

A eficiência do tratamento anti-inflamatório por via inalatória no controle da asma já está estabelecida,(3,4) sendo a terapêutica anti-­inflamatória por via inalatória uma recomendação universal das diversas diretrizes de tratamento da doença. Entretanto, o acesso a essa modalidade terapêutica, em nosso meio, tem sido dificultado em decorrência do baixo poder aquisitivo dos pacientes, da não-disponibilização gratuita do medicamento na rede pública de saúde e da não-adesão dos pacientes ao tratamento.(5-7) Além desses fatores, estudos têm verificado que a não-aplicação das diretrizes de diagnóstico e tratamento da asma por parte dos médicos contribui significativamente para o fracasso do controle da doença.(8-12)

O presente estudo teve como objetivo verificar o grau de adequação da assistência médica prestada à pacientes asmáticos adultos oriundos da rede pública de saúde. Foram avaliados pacientes encaminhados para primeira consulta no ambulatório do Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/UFMG), empregando-se, como parâmetro, diretrizes internacionais disponíveis para o manejo da asma.(12)

Métodos

Foram incluídos pacientes encaminhados para primeira consulta no ambulatório de Pneumologia do HC/UFMG, com suspeita de asma e com idade superior a 18 anos, oriundos da rede municipal de saúde de Belo Horizonte (MG). Os pacientes foram atendidos e incluídos consecutivamente no período entre novembro de 2006 e outubro de 2007. Os pesquisadores aplicaram um questionário desenvolvido especificamente para este projeto, abrangendo 98 itens que incluíam dados sociais, demográficos, econômicos e variáveis clínicas que são atualmente utilizadas na avaliação do controle da doença. O questionário abrangeu ainda questões sobre a duração dos sintomas, a assistência médica prestada previamente, a propedêutica realizada, os fatores desencadeantes, a história familiar, a medicação previamente utilizada, o grau de informação recebida sobre a doença e seu tratamento, os dados funcionais prévios, os resultados da prova espirométrica realizada no serviço e o diagnóstico final estabelecido. Para a verificação da adequação da assistência previamente recebida pelos pacientes ­utilizaram-se, como referência, as recomendações da Global Initiative for Asthma (GINA) de 2006.(12) As provas funcionais foram realizadas na rotina do serviço de acordo com as Diretrizes Brasileiras de Função Pulmonar, sem a interferência dos pesquisadores. Os seus resultados foram transcritos do prontuário pelos mesmos pesquisadores, assim como o diagnóstico final dado pelos médicos assistentes. Constituíram-se critérios de exclusão o encaminhamento para tratamento de outra condição clínica que não asma, a incapacidade do paciente de responder às perguntas em função de déficit cognitivo e a presença de crise aguda grave no momento da entrevista.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, concordando em participar do estudo.

As variáveis descritivas da amostra são apresentadas como média, amplitude e desvio-padrão, quando aplicáveis. Para a comparação de proporções, foi utilizado o teste do qui-quadrado. O teste de McNemar foi usado para a comparação da hipótese diagnóstica na primeira consulta com o diagnóstico final do caso, levando-se em consideração a dependência existente entre os resultados do mesmo paciente. Os testes estatísticos foram realizados no programa Minitab, versão 14 (Minitab Inc., State College, MA, EUA), tendo sido considerados um nível de 95% de confiança e um valor de alfa de 0,05.

Resultados

A amostra constituiu-se de 102 pacientes, sendo que 70 (68,6%) foram confirmados como asmáticos e 7 (6,9%) tiveram outros diagnósticos. Dos 102 pacientes, 24 (23,5%) não retornaram para as consultas subsequentes até o término do estudo, os quais foram denominados "sem confirmação"; 1 paciente não completou o questionário e foi excluído do estudo. A idade média dos asmáticos foi de 47,6 anos, sendo a maioria de baixa escolaridade e com renda familiar inferior a três salários mínimos (Tabela 1).



Entre os pacientes asmáticos, 33 (47,1%) haviam consultado um pneumologista previamente, em média há 4 anos, sendo que a maior parte havia sido encaminhada por um médico generalista (Tabela 1).

Metade dos asmáticos havia realizado espirometria previamente, e 34,3% já haviam realizado manobra do PFE. As medicações mais frequentemente prescritas pelos médicos consultados anteriormente foram o β2-agonista de curta duração (98,5%), corticosteroide oral (63,8%) e corticosteroide inalatório (47,8%; Figura 1).



Dessa amostra de pacientes, 62 (88,5%) estavam em uso de medicação para asma quando da primeira consulta. Dentre eles, 90,3% estavam em uso de um β2-agonista de curta duração de ação; 37% usavam um corticosteroide inalatório; 17,7%, um corticosteroide oral; e 16,1% estavam utilizando uma associação de β2-agonista de longa duração e corticosteroide inalatório (Figura 1).

Dentre os asmáticos, 15 (21,4%) declararam que já haviam recebido informações sobre a doença, sendo que menos da metade (45,7%)
alegava ter sido orientada sobre como proceder em caso de crise (Tabela 2). Quarenta e nove pacientes (70,0%) haviam procurado atendimento em pronto-socorro no ano anterior (média = 6,9 visitas) e apresentavam uma média semanal elevada de sintomas diurnos, noturnos e uso de β2-agonista para alívio de sintomas, além de alto absenteísmo ao trabalho e à escola devido à falta de controle da doença (Tabela 3).








A técnica de uso do dispositivo inalatório foi considerada correta em 50,8% dos asmáticos, sendo que 84,6% deles foram orientados sobre como utilizá-lo.

Em relação às recomendações do GINA, o tratamento previamente recebido foi considerado adequado em 13 pacientes (18,6%). Dentre aqueles que haviam consultado com um pneumologista anteriormente, 24,2% apresentaram tratamento concordante com as diretrizes. Este percentual foi de 13,5% entre os que nunca haviam consultado um especialista (p = 0,249; Figura 2). Quando se compararam a classificação de gravidade observada na primeira consulta com aquela feita nas consultas subsequentes, verificou-se modificação significativa na classificação de gravidade dos pacientes (p = 0,002).



Discussão

O presente estudo demonstrou que, nesta amostra de pacientes, a propedêutica e a terapêutica empregadas por médicos não-­especialistas do sistema público de saúde estiveram, de maneira geral, em desacordo com as diretrizes de diagnóstico e tratamento da asma. Em relação às recomendações do GINA, por exemplo, o tratamento foi considerado adequado em apenas 18,6% dos pacientes, semelhante ao que foi relatado em outro estudo, no qual apenas 30,0% dos pacientes avaliados receberam tratamento concordante com as diretrizes brasileiras para o manejo da asma.(13) A maioria dos pacientes (97,1%) havia sido tratada por médicos não-especialistas, o que justifica, pelo menos em parte, o fato de que apenas metade deles havia realizado espirometria anteriormente. Da mesma forma, cerca de 34,0% dos pacientes haviam feito uma manobra de PFE previamente. Entretanto, verificou-se que, quanto à taxa de concordância com as diretrizes de asma, o tratamento previamente recebido por pacientes que já haviam consultado com pneumologistas (47,1%) não foi superior ao que foi recebido pelos demais pacientes. Esse fato poderia ser explicado, em parte, pelo longo tempo decorrido desde a consulta com o especialista (média de 4 anos). Outros autores avaliaram 5.580 pacientes asmáticos e verificaram que aqueles que foram tratados por especialistas eram mais propensos a ter realizado manobras de PFE e a receber tratamentos concordantes com diretrizes, assim como a receber mais informações sobre prevenção e atitudes a serem tomadas na presença de uma crise de asma.(11) No estudo atual, somente 21,4% dos pacientes receberam informações sobre a doença, e 45,7% receberam orientações sobre como proceder em caso de crise aguda, o que pode ser atribuído ao fato de que o tratamento havia sido conduzido, em sua maioria, por médicos não-especialistas. Embora a amostra do estudo tenha sido constituída predominantemente por pacientes portadores de asma persistente (94,3%), somente 53,1% encontravam-se em uso de corticosteroide inalatório, contrariando as recomendações atuais de tratamento. Outra observação importante foi que 48% dos pacientes faziam uso de β2-agonistas de longa duração isoladamente e que 19,6% dos pacientes utilizavam β2-agonista de curta duração na forma de xarope ou comprimidos. Alguns autores verificaram que pneumologistas e alergistas possuíam um grau superior de conhecimento das diretrizes de asma quando comparados com residentes, pós-graduandos e médicos responsáveis pela atenção primária.(14) Em nosso meio, um estudo comparou pacientes asmáticos tratados ambulatorialmente por especialistas com aqueles que procuraram serviços de pronto-atendimento (PA) no mesmo hospital devido à exacerbação de asma. Os que foram tratados por generalistas possuíam maior número de visitas ao PA (95,3% vs. 48,8%; p < 0,001) e menor percentual de acertos quanto à técnica de uso de medicação inalatória (11,6% vs. 50,0%; p < 0,001).(6)

No atual estudo, 49 pacientes (70,0%) haviam procurado PA no ano anterior, em média 6,9 vezes, e 33 (50,8%) utilizavam corretamente a medicação inalatória. Essa porcentagem elevada poderia ser creditada ao fato de ter havido uma consulta prévia com um pneumologista em boa parte dos casos. Em um estudo que envolveu 1.559 pacientes, os autores relataram que as medicações mais comumente prescritas foram β2-agonistas de curta duração (71%), seguido pela associação β2-agonista de longa duração e corticosteroide inalatório (59%).(5) De maneira semelhante, no presente estudo, os β2-agonistas de curta duração foram as medicações mais usadas (90,3%); entretanto, a associação β2-agonista de longa duração e corticosteroide inalatório foi pouco prescrita (16,1%), levando-se em consideração que 27,4% da amostra eram portadores de asma grave. Em um estudo latino-americano, avaliando o manejo da asma em 11 países, mostrou resultados semelhantes.(15)

Nesse estudo, uma parcela pequena da ­população estudada utilizava medicações compatíveis com a gravidade de sua doença, sendo que apenas 6% faziam uso de corticosteroides inalatórios.(15)

No presente estudo, verificou-se que, após a propedêutica, houve um decréscimo significativo na classificação da gravidade, o que parece indicar que a maioria desses pacientes apresentava-se, na verdade, mal controlados, o que pode ser confirmado pela média semanal elevada de sintomas diurnos (5,4), de sintomas noturnos (3,0) e do uso de β2-agonista de resgate (4,7). Esses dados são concordantes com os do estudo Asthma Insights and Reality in Latin America, no qual se verificou que, segundo os critérios do GINA, apenas 2,4% dos pacientes encontravam-se totalmente controlados.(15) Deve-se considerar, ainda, o baixo nível educacional e econômico desta amostra de pacientes, que pode ter contribuído para a ausência de controle da doença.

Este estudo tem como sua principal limitação o número pequeno de pacientes incluídos. Os pacientes encaminhados para primeira consulta foram incluídos consecutivamente no período de um ano, sendo esse número decorrente da redução temporária de vagas no serviço ocorrida no período. Embora o delineamento transversal imponha limitações quanto à análise de causalidade, essa metodologia tem sido utilizada em diversos inquéritos que objetivam apurar dados populacionais e epidemiológicos. Acrescente-se também a perda de 30,7% dos pacientes durante o seguimento, sendo que os dados obtidos não foram comparados com os dos pacientes em tratamento com médicos especialistas. Para a classificação de gravidade e controle da asma, foram utilizadas as recomendações do GINA de 2006, a versão disponível quando do início da coleta de dados.

Os resultados deste estudo, apesar de suas limitações, salientam que, além da disponibilização de medicamentos específicos para o tratamento da asma na rede pública de saúde, há a necessidade da implementação sistemática de programas oficiais de educação médica continuada, priorizando o nível de atenção primária, com instrumentalização e treinamentos adequados, associados à disseminação dos conhecimentos atualmente disponibilizados pelas diretrizes de asma.


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Sobre os autores

Carla Discacciati Silveira
Médica Pneumologista. Hospital Semper, Belo Horizonte (MG) Brasil.

Flávia de Barros Araújo
Médica Pneumologista. Hospital Semper, Belo Horizonte (MG) Brasil.

Luiz Fernando Ferreira Pereira
Médico Coordenador. Ambulatório de Asma e DPOC, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG) Brasil.

Ricardo de Amorim Corrêa
Professor Adjunto. Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG) Brasil.



Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG) Brasil.
Endereço para correspondência: Ricardo de Amorim Corrêa. Rua Abadessa Gertrudes Prado, 77, apto. 802, Vila Paris, CEP 30380-790, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Tel 55 31 3293-3910. E-mail: racorrea9@gmail.com
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 26/11/2008. Aprovado, após revisão, em 10/2/2009.

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