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Relato de Caso

Lesão complexa da traqueia: correção com retalho pediculado de músculo intercostal

Complex tracheal lesion: correction with an intercostal muscle pedicle flap

Hylas Paiva da Costa Ferreira, Carlos Alberto Almeida de Araújo, Jeancarlo Fernandes Cavalcante, Ronnie Peterson de Melo Lima

ABSTRACT

Esophageal reconstruction is one of the most complex types of gastrointestinal surgery, principally when it is performed using minimally invasive techniques. The procedure is associated with various complications, such as anastomotic dehiscence, chylothorax, esophageal necrosis and fistulae. We report the case of a patient diagnosed with epidermoid carcinoma in the distal third of the esophagus. The patient was submitted to esophagectomy by video-assisted thoracoscopy and laparoscopy. During the operation, the left main bronchus was injured, and this required immediate surgical correction. In the postoperative period, the patient presented with acute respiratory failure and profuse air leak through the thoracic drains and through the cervical surgical wound. The patient underwent a second surgical procedure, during which a large lesion was discovered in the membranous wall of the trachea. The lesion was corrected with an intercostal muscle pedicle flap.

Keywords: Trachea; Esophageal fistula; Respiratory tract fistula; Intercostal muscles; Esophagectomy.

RESUMO

A reconstrução esofágica é uma das mais complexas cirurgias do aparelho digestivo, principalmente quando realizada por técnicas minimamente invasivas. Esse procedimento está associado a inúmeras complicações, como deiscência de anastomose, quilotórax, necrose do tubo gástrico e fistulas. Relatamos o caso de um paciente com o diagnóstico de carcinoma epidermoide no terço distal do esôfago que foi submetido à uma esofagectomia por videotoracoscopia e laparoscopia. Durante o ato operatório, houve lesão do brônquio principal esquerdo, sendo necessária a correção cirúrgica imediata da lesão. No pós-operatório, o paciente evoluiu com insuficiência respiratória aguda e grande escape aéreo pelos drenos de tórax e pela ferida operatória cervical. Foi submetido à nova intervenção cirúrgica, através da qual se observou uma grande lesão na parede membranosa da traqueia, que foi corrigida com um retalho de músculo intercostal.

Palavras-chave: Traqueia; Fístula esofágica; Fístula do sistema respiratório; Músculos intercostais; Esofagectomia.

Introdução

A esofagectomia é um procedimento que ­apresenta elevada morbidade e mortalidade, apesar da melhor seleção dos pacientes operados, dos avanços nas técnicas cirúrgicas e dos cuidados em terapia intensiva.(1,2)

Algumas complicações associadas a esse procedimento são: estenose ou deiscência da anastomose esofagogástrica, fístulas, quilotórax, necrose do tubo gástrico e complicações cardiopulmonares.(3)

A reconstrução do esôfago é uma das mais complexas cirurgias do aparelho digestivo, principalmente quando realizada por técnicas minimamente invasivas.(2) Fístulas envolvendo a traqueia, brônquios e o neoesôfago são bastante raras, correspondendo a uma das ­complicações mais temidas após a esofagectomia.(4) O paciente que evolui com tal complicação pode apresentar insuficiência respiratória aguda, broncopneumonia recorrente ou mediastinite.(4,5) Sinais sugestivos de lesão traqueal são o escape aéreo significativo pelos drenos torácicos e pela ferida operatória cervical, bem como enfisema subcutâneo.(6) Dentre as etiologias descritas na literatura, uma das principais é a erosão traqueal por suco gástrico, derivado da fístula, na anastomose esofagogástrica, associada à hiperinsuflação do balão do tubo traqueal e a radioterapia neoadjuvante como possíveis causas.(7)

Relatamos a seguir o caso de um paciente com carcinoma epidermoide de esôfago que foi submetido a uma esofagectomia por videotoracoscopia e laparoscopia.

Relato de caso

Paciente de 56 anos, sexo masculino, encaminhado ao Hospital Universitário Onofre Lopes com o diagnóstico de carcinoma epidermoide pouco diferenciado no terço distal do esôfago. Maratonista há 20 anos e usuário de cachimbo durante 40 anos, interrompendo o hábito há 2 anos.
À endoscopia digestiva alta, apresentava lesão vegetante de 1,5 cm. A TC de tórax e abdome não apresentava sem sinais de doença avançada.

Dessa forma, foi submetido a uma esofagectomia total em três campos, com linfadenectomia mediastinal e celíaca, e reconstrução com tubo gástrico, associado a uma jejunostomia, realizada pela equipe de cirurgia do aparelho digestivo do referido hospital. Durante a linfadenectomia mediastinal, houve lesão do brônquio principal esquerdo a aproximadamente 1,5 cm da carina traqueal em sua parede medial, sendo realizada uma broncorrafia. No sétimo dia de pós-­operatório, o paciente evoluiu com dispneia e aumento do débito pelos drenos (o direito com 2.500 mL/24 h de líquido com aspecto "leitoso", sendo confirmado quilotórax). A ausculta pulmonar estava abolida à direita, com escape aéreo pelo dreno ipsilateral. Realizada radiografia de tórax, que confirmou um pneumotórax à direita, e, em seguida, uma broncoscopia, que revelou deiscência da broncorrafia.

Foi realizada uma toracotomia póstero-lateral direita com sutura do brônquio e proteção com retalho pediculado de músculo intercostal sobre o mesmo, seguido de ligadura do ducto torácico no mesmo ato operatório. No pós-operatório imediato, foi realizada uma nova broncoscopia, que mostrou o total fechamento da lesão brônquica.

No dia seguinte à extubação, o paciente evoluiu com dispneia e sinais de insuficiência respiratória, sendo novamente intubado. No 14º dia de pós-operatório, ao se mobilizar o paciente, observou-se volumoso escape aéreo pelo dreno torácico e pela ferida operatória cervical, e que, com o avanço do tubo traqueal para a posição distal próximo à carina traqueal, o escape aéreo cessava.

Foi realizada uma nova toracotomia, pela qual se observou uma grande lesão comprometendo aproximadamente 4 cm da parede membranosa da traqueia, onde se observava o balão do tubo orotraqueal, herniado pela lesão traqueal, e deiscência da anastomose esofagogástrica (Figura 1). A lesão corrigida do brônquio principal esquerdo encontrava-se integra.
Diante da falta de condições de sutura da parede membranosa da traqueia e da gravidade do paciente para a realização de traqueoplastia, optamos pela correção com o uso de retalho pediculado de músculo intercostal (dois segmentos intercostais; Figuras 2 e 3), o qual foi ancorado nas paredes cartilaginosas da traqueia, corrigindo o defeito da parede membranosa da mesma. Foi realizado o sepultamento do tubo gástrico na cavidade pleural e esofagostomia cervical.







No seguimento com broncoscopia, evidenciou-se boa cicatrização da traqueia, sem sinais de fistulas ou de granulomas intratraqueais. Após 5 meses de evolução, as condições gerais do paciente melhoraram, e a reconstrução do trânsito gastrintestinal foi realizada com seguimento de cólon.

Discussão

Após a ressecção do esôfago, é necessária a reconstrução do trânsito alimentar, que pode ser feita com o cólon, o jejuno ou o estômago, sendo o último o órgão mais utilizado para esse fim, em virtude da sua boa vascularização e da grande capacidade de ser mobilizado.(1,2)

A esofagectomia ainda apresenta elevada morbidade e mortalidade, apesar da melhor seleção dos pacientes, dos avanços nas técnicas cirúrgicas e dos cuidados em terapia intensiva. Dentre as várias complicações, podemos citar a lesão do nervo laríngeo recorrente, hemorragia mediastinal, lesão traqueal, necrose do tubo gástrico, intercorrências cardiopulmonares, quilotórax, deiscência da anastomose esofagogástrica, fístulas e refluxo gastroesofágico.(2,3) Em centros de menor experiência, a mortalidade após a esofagectomia pode atingir valores próximos a 25%.(2) Uma revisão feita no período de 1980-1990 mostrou que a incidência de deiscência da anastomose esofagogástrica é de aproximadamente 12%, sendo maior nas anastomoses cervicais do que nas intratorácicas.(1)

Fístulas aéreas decorrentes de lesões na traqueia ou em brônquio fonte são complicações graves que frequentemente levam à insuficiência respiratória e morte.(4) Dentre as causas de lesões traqueobrônquicas após a ressecção esofágica, podemos citar o trauma cirúrgico com lesão direta das estruturas, a deiscência da anastomose esofagogástrica, a infecção peritraqueal, a intubação orotraqueal com hiperinsuflação do cuff e a extensa linfadenectomia do mediastino superior, que proporciona uma desvascularização da traqueia e dos brônquios fonte.(4,8) Dentre essas causas, as mais intimamente relacionadas à lesão de traqueia são a deiscência da anastomose esofágica com erosão cáustica da traqueia e a isquemia decorrente da linfadenectomia mediastinal extensa.(4)

Apesar da deiscência da anastomose esofagogástrica ocorrer em 6-13% dos casos e da grande relação anatômica entre traqueia, brônquios e neoesôfago, a formação de fístulas entre o tubo gástrico e as vias aéreas ocorre em uma porcentagem bem menor.(5,9) Um grupo de autores observou que, dos 383 pacientes submetidos à esofagectomia, apenas 1 apresentou tal complicação, correspondendo a uma incidência aproximada de 0,3%.(5)

Os pacientes que evoluem no pós-operatório de uma esofagectomia com fístula entre a anastomose esofagogástrica e a traqueia podem apresentar dispneia de inicio súbito, aumento das secreções traqueais, broncopneumonias recorrentes, insuficiência respiratória aguda, tosse, perda de peso e mediastinite, podendo ainda ocorrer enfisema subcutâneo e escape aéreo pelos drenos de tórax e pela ferida operatória cervical, sendo essas três últimas ocorrências muito sugestivas de lesão traqueal.(4,7,10)

Uma análise sobre lesões traqueobrônquicas com formação de fístula aérea após esofagectomia mostrou uma taxa de mortalidade de 32,2% nos pacientes que evoluíram com essa complicação. Além disso, dependendo da etiologia da fístula, aproximadamente 50% dos pacientes com fístula de origem isquêmica foram a óbito.(4)

No caso apresentado, a lesão apresentou-se na parede membranosa da traqueia intratorácica, no mesmo local onde se encontrava o balão do tubo orotraqueal, sugerindo que a pressão exercida pelo balão foi um dos fatores responsáveis, tendo em vista que essa proporcionou uma isquemia local, levando à necrose do seguimento da parede membranosa da traqueia; ocorreu também deiscência da anastomose esofagogástrica com lesão cáustica (suco gástrico) sobre a área anteriormente referida. Associada a esses fatores, a extensa linfadenectomia mediastinal realizada durante a ressecção esofágica provavelmente contribuiu para a isquemia traqueal.

Sendo assim, concluímos que uma série de fatores contribuiu para a lesão traqueal; entre esses, a desvascularização traqueal pela linfadenectomia mediastinal, a isquemia traqueal causada pelo tubo orotraqueal e uma possível lesão cáustica causada pela deiscência da anastomose esofagogástrica. Os retalhos pediculados de músculo intercostal são uma excelente alternativa para a correção de lesões complexas da traqueia e para o reforço de suturas nesse órgão.


Referências


1. Urschel JD. Esophagogastrostomy anastomotic leaks complicating esophagectomy: a review. Am J Surg. 1995;169(6):634-40.

2. Fabian T, Martin JT, McKelvey AA, Federico JA. Minimally invasive esophagectomy: a teaching hospital's first year experience. Dis Esophagus. 2008;21(3):220-5.

3. Parekh K, Iannettoni MD. Complications of esophageal resection and reconstruction. Semin Thorac Cardiovasc Surg. 2007;19(1):79-88.

4. Bartels HE, Stein HJ, Siewert JR. Tracheobronchial lesions following oesophagectomy: prevalence, predisposing factors and outcome. Br J Surg. 1998;85(3):403-6.

5. Buskens CJ, Hulscher JB, Fockens P, Obertop H, van Lanschot JJ. Benign tracheo-neo-esophageal fistulas after subtotal esophagectomy. Ann Thorac Surg. 2001;72(1):221-4.

6. Cerfolio RJ, Bryant AS, Yamamuro M. Intercostal muscle flap to buttress the bronchus at risk and the thoracic esophageal-gastric anastomosis. Ann Thorac Surg. 2005;80(3):1017-20.

7. Kalmár K, Molnár TF, Morgan A, Horváth OP. Non-malignant tracheo-gastric fistula following esophagectomy for cancer. Eur J Cardiothorac Surg. 2000;18(3):363-5.

8. Hameed AA, Mohamed H, Al-Mansoori M. Acquired tracheoesophageal fistula due to high intracuff pressure. Ann Thorac Med. 2008;3(1):23-5.

9. Marty-Ané CH, Prudhome M, Fabre JM, Domergue J, Balmes M, Mary H. Tracheoesophagogastric anastomosis fistula: a rare complication of esophagectomy. Ann Thorac Surg. 1995;60(3):690-3.

10. Hulscher JB, ter Hofstede E, Kloek J, Obertop H, De Haan P, Van Lanschot JJ. Injury to the major airways during subtotal esophagectomy: incidence, management, and sequelae. J Thorac Cardiovasc Surg. 2000;120(6):1093-6.



Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica, Hospital Universitário Onofre Lopes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (RN) Brasil.
Endereço para correspondência: Hylas Paiva da Costa Ferreira. Rua Raimundo Chaves, 2231, apto 201, Candelária, CEP 59064-390, Natal, RN, Brasil.
Tel 55 84 4009-2030. E-mail: hylasferreira@gmail.com
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 29/7/2009. Aprovado, após revisão, em 14/9/2009.


Sobre os autores

Hylas Paiva da Costa Ferreira
Professor Auxiliar de Cirurgia Torácica. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (RN) Brasil.

Carlos Alberto Almeida de Araújo
Professor Adjunto de Cirurgia Torácica. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (RN) Brasil.

Jeancarlo Fernandes Cavalcante
Professor Adjunto. Departamento de Medicina Integrada, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (RN) Brasil.

Ronnie Peterson de Melo Lima
Doutorando em Medicina. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (RN) Brasil.

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