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ISSN (on-line): 1806-3756

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Cartas ao Editor

Diga-me onde você foi, eu posso dizer quem você infectou

Tell me where you went, I may tell who you infected

Sónia Silva Guerra1, Eduarda Seixas2, Ana Isabel Ribeiro3,4,5, Raquel Duarte3,6,7,8

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220099

AO EDITOR,
 
A transmissão do Mycobacterium tuberculosis depende das características do caso índice, do tipo de exposição e de fatores ambientais.(1) Uma vez que um novo caso é identificado, a investigação de contatos é um componente fundamental do controle da tuberculose. A triagem de contatos pode se tornar insuficiente se não valorizarmos as informações de contato pessoa a pessoa em espaços de atividade (locais para onde as pessoas vão/viajam para suas atividades diárias).(2) A análise espacial usando Sistemas de Informação Geográficas (SIG) tem promovido a vigilância direcionada da tuberculose; porém, geralmente não são coletados dados detalhados sobre mobilidade individual, fato que explica a falta de estudos em microescala.(3,4)
 
Apesar do declínio generalizado das taxas de notificação de tuberculose na Europa, a incidência da doença em Portugal permanece elevada (16,7/100.000 habitantes), sendo as zonas costeiras do norte as regiões mais preocupantes.(5,6) Os Centros de Diagnóstico Pneumológico de tuberculose são responsáveis pela gestão da tuberculose ativa e pela triagem de grupos de risco no país. A reorganização da resposta assistencial e a otimização do rastreamento são prioridades na estratégia para erradicar a tuberculose.(6)
 
Este estudo piloto teve como objetivos 1) caracterizar a distribuição espacial dos espaços de atividade de pacientes com tuberculose de um Centro de Diagnóstico Pneumológico de tuberculose  numa zona urbana do norte de Portugal e 2) determinar se os espaços de atividade identificados durante a investigação de contatos estavam mais aglomerados do que o esperado e identificar onde se localizavam essas aglomerações.
 
Foram incluídos todos os pacientes com 18 anos ou mais diagnosticados com tuberculose pulmonar entre março de 2019 e março de 2021, que fossem contactáveis e capazes de fornecer informações. O período contagioso incluiu os três meses antes do desenvolvimento de sintomas para aqueles com baciloscopia positiva ou radiografia de tórax com cavitação pulmonar; ou as quatro semanas anteriores à coleta da amostra em casos de diagnóstico por cultura positiva (baciloscopia negativa, sem cavitação). Os espaços de atividade de alto risco foram aqueles onde, durante o período contagioso, os contatos tiveram ≥8 horas cumulativas de exposição a pacientes com baciloscopia positiva ou ≥40 horas cumulativas em casos de baciloscopia negativa.(2)
 
Os pacientes responderam a uma consulta telefônica realizada por seus médicos, após consentirem em participar do estudo. Pedimos a eles que descrevessem sua semana típica durante o período contagioso e listassem os espaços de atividade de alto risco para os quais foram/viajaram para suas atividades diárias.
 
Os endereços dos espaços de atividade foram geocodificados utilizando o software QGIS (Quantum GIS Development Team, 2013), o plugin MMQGIS Python e a API do Google Maps. Para representar a distribuição espacial dos espaços de atividade, utilizamos a função de estimativa de densidade do kernel (KDE), e o método de Nearest Neighbor Hierarchical Clustering (NNHC) foi aplicado usando o software CrimeStat 3.3 para identificar as áreas dos clusters.(7)
 
Dentre os 76 pacientes monitorados devido à tuberculose pulmonar, 19 foram excluídos (12 não contatáveis, 6 falecidos e 1 menor de idade). A maioria dos pacientes excluídos era do sexo masculino (73,7%), com média de idade de 51 anos (DP=26,7), e dois terços estavam inativos/desempregados.
 
Desta forma, 57 pacientes foram incluídos no estudo, sendo a maioria do sexo masculino (68,4%), com média de idade de 45,1 anos (DP=16,4). Trinta e sete pacientes eram trabalhadores ativos e trinta foram diagnosticados antes da pandemia de COVID-19 e da implementação das medidas de confinamento.
 
Os espaços de atividade (n=141) incluíram majoritariamente residências (n=57) e espaços públicos, como cafeterias e padarias (n=41), empresas/locais de trabalho (n=15), escolas (n=12), supermercados (n=3), igrejas (n=2) e academias (n=2). O número mediano de espaços públicos visitados relatado foi de 1 (IIQ 1). Mais precisamente, 57,9% relataram ter visitado 0 a 1 espaços públicos, enquanto 42,1% relataram ≥2. O número de espaços públicos visitados foi independente de sexo (p=0,313), idade (p=0,162) e período (antes ou após as medidas de confinamento) (p=0,462).
 
Os espaços públicos identificados localizavam-se a uma distância mediana de 1.483 metros (IIQ 4.876) da área residencial. A Figura 1A mostra a distribuição espacial das localizações dos pontos dos espaços de atividade e o mapa de densidade resultante. As zonas mais escuras representam locais com maior concentração de espaços de atividade, majoritariamente localizados na porção noroeste do município de Espinho e nas freguesias de Canidelo e Vilar de Andorinho, no município de Vila Nova de Gaia (VNG).

 
A Figura 1B, por sua vez, representa os três aglomerados espaciais com maiores concentrações de espaços visitados, correspondendo a freguesias com maior densidade populacional, menor rendimento, más condições de vida e maiores taxas de desemprego juvenil.(8,9)
 
O cluster 1 situava-se no cruzamento de Vilar de Andorinho, Mafamude e Vilar do Paraíso (município de VNG), com uma área de 3,0 quilômetros quadrados (km2), e abrangia 18 espaços de atividade, compostos em sua maioria por locais residenciais concentrados (grandes complexos de habitação social), cafeterias, padarias e supermercados.
 
Já o cluster 2 localizava-se majoritariamente na freguesia de Espinho (município de Espinho), com uma área de 2,1-km2, e incluía 13 espaços de atividade, na maioria locais residenciais (diferentes complexos de habitação social), cafeterias, padarias, restaurantes e escolas.
Por fim, o cluster 3 localizava-se majoritariamente em Canidelo (município de VNG), com uma área de 1,3-km2, e incluía 17 espaços de atividade, principalmente locais residenciais, igrejas, empresas, supermercados, cafeterias, padarias, academias e escolas.
 
Há evidências crescentes de que o uso da análise espacial na vigilância da tuberculose contribui para um melhor entendimento da dinâmica de transmissão.(1) Aqui utilizamos uma abordagem diferente, solicitando aos pacientes que descrevessem suas atividades diárias durante o período contagioso, além da identificação de contatos próximos. Esse método permitiu a identificação de diversos espaços de atividade que permaneceriam desconhecidos em um método clássico de triagem, que geralmente se concentra em contatos próximos e não em atividades rotineiras.
 
O georreferenciamento dos espaços de atividade permitiu identificar três regiões com risco potencialmente maior de transmissão. Esses clusters eram compostos principalmente por complexos de habitação social e locais de alimentação, revelando a importância da sociabilidade como fator de contágio. Além disso, correlacionar a análise espacial com dados sociodemográficos, como a agregação de imigrantes, a privação socioeconômica, condições de moradia ou acessibilidade precária à saúde, pode ajudar a detectar e melhorar o diagnóstico da tuberculose mais precocemente e possivelmente romper os vínculos de transmissão, especialmente nesses grupos vulneráveis.(10)
 
Este estudo piloto apresentou várias limitações. Em primeiro lugar, tratou-se de um estudo retrospectivo sujeito a viés de memória, com tamanho amostral limitado. Entretanto, os pacientes incluídos eram mais ativos/móveis do que o grupo excluído, o que significa que pudemos identificar um número considerável de locais públicos. Em segundo lugar, o período de estudo coincidiu parcialmente com a pandemia de COVID-19 e as consequentes restrições de mobilidade. No entanto, não observamos diferenças significantes nos locais visitados antes e após a implementação das medidas de confinamento.
 
Em conclusão, o uso da análise espacial na triagem da tuberculose pode melhorar a compreensão da epidemiologia local da doença em microescala e permitir intervenções precoces no seu controle. Além disso, esta metodologia pode ser aplicada a outras infecções respiratórias, tais como o vírus influenza ou SARS-CoV-2.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
RD concebeu a ideia do projeto e orientou o estudo. SSG e ES realizaram a consulta telefônica, coletaram os dados e fizeram a análise estatística. SSG e AIR realizaram a geocodificação e a análise espacial e redigiram o manuscrito. RD e AIR revisaram o manuscrito. Todos os autores leram e aprovaram a versão final.
 
FINCANCIAMENTO
 
Este estudo foi financiado pelo FEDER através do Programa Operacional ‘Competitividade e Internacionalização’ e recebeu financiamento nacional da Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT (Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal) no âmbito da Unidade de Investigação em Epidemiologia - Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (EPIUnit) (UIDB/04750/2020) e do Laboratório para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR) (LA/P/0064/2020). Ana Isabel Ribeiro recebeu auxílio por Fundos Nacionais através da FCT, no âmbito do programa ‘Estímulo ao Emprego Científico – Apoio Individual’, sob contrato CEECIND/02386/2018.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Shaweno D, Karmakar M, Alene KA, Ragonnet R, Clements A, Trauer JM, et al. Methods used in the spatial analysis of tuberculosis epidemiology: a systematic review. BMC Med. 2018;16:193. https://doi.org/10.1186/s12916-018-1178-4.
2.            Centers for Disease Control and Prevention. Guidelines for the investigation of contacts of persons with infectious tuberculosis; recommendations from the National Tuberculosis Controllers Association and CDC, and Guidelines for using the QuantiFERON®-TB Gold test for detecting Mycobacterium tuberculosis infection, United States. MMWR 2005;54:4-15.
3.            Perez L, Dragicevic S. An agent-based approach for modeling dynamics of contagious disease spread. Int J Health Geogr. 2009;8:50. https://doi.org/10.1186/1476-072X-8-50.
4.            Oliveira O, Ribeiro AI, Krainski ET, Rito T, Duarte R, Neves M. Using Bayesian spatial models to map and to identify geographical hotspots of multidrug-resistant tuberculosis in Portugal between 2000 and 2016. Sci Rep 2020;10:16646. https://doi.org/10.1038/s41598-020-73759-w.
5.            European Centre for Disease Prevention and Control, WHO Regional Office for Europe. Tuberculosis surveillance and monitoring in Europe 2021 – 2019 data. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2021.
6.            Martins S, Carvalho I, Santos JV, Duarte R. Tuberculosis in undiagnosed children: What are the criteria to start treatment in Portugal? Rev Port Pneumol (2006). 2015;21(4):223-224. https://doi.org/10.1016/j.rppnen.2015.03.003.
7.            CrimeStat: A Spatial Statistics Program for the Analysis of Crime Incident Locations (v 3.1). Ned Levine & Associates, Houston, TX, and the National Institute of Justice, Washington, DC, March 2007.
8.            Divisão de Ação Social, Voluntariado e Saúde da Câmara Municipal de Gaia. Plano de Desenvolvimento Social Vila Nova de Gaia 2017-2021. Vila Nova de Gaia, 2021.
9.            Rede Social de Espinho da Câmara Municipal de Espinho. Diagnóstico Social do Concelho de Espinho. Espinho, 2021.
10.          Zão I, Ribeiro AI, Apolinário D, Duarte R. Why does it take so long? The reasons be-hind tuberculosis treatment delay in Portugal. Pulmonology. 2019;25(4):215-222. https://doi.org/10.1016/j.pulmoe.2019.02.005.

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