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Cartas ao Editor

Limiar de imunidade de rebanho para SARS-CoV-2 e efetividade da vacinação no Brasil

Herd immunity threshold for SARS-CoV-2 and vaccination effectiveness in Brazil

Priscila C. Siqueira1,2, João P. Cola1,2, Tatiane Comerio2,3, Carolina M. M. Sales1,2, Ethel L. Maciel1,2

DOI: 10.36416/1806-3756/e20210401

AO EDITOR,
 
Estimar o limiar de imunidade de rebanho para COVID-19 no meio da pandemia é um desafio. Tal limite, definido como a porcentagem de pessoas a serem vacinadas para a melhoria dos indicadores de doença e controle da pandemia, está sendo modificado à medida que o vírus sofre mutações, levando ao escape imunológico das vacinas e da imunidade conferida pela própria infecção prévia.(1)
 
Na história de doenças humanas causadas por agentes infecciosos, apenas a varíola foi erradicada. Esse vírus pode ser transmitido por contato próximo e por meio de gotículas e secreções respiratórias contendo o agente infeccioso. O contágio indireto em distâncias mais longas, através de aerossóis, é muito menos comum. A taxa de reprodução do vírus era igual a 5, o que significa que cada pessoa com varíola poderia infectar outras cinco pessoas. A doença causava lesões na pele do paciente, o que tornou mais fácil localizar e isolar pessoas infectadas; além disso, uma vez doente ou vacinado, a possibilidade de reinfecção era remota.(2) A erradicação da varíola levou cerca de 184 anos, desde o surgimento de uma vacina eficaz até o desaparecimento completo da doença.
 
A literatura mostra que existem diferenças entre as duas doenças. A primeira é que muitas pessoas assintomáticas infectadas com COVID-19 podem continuar a espalhar o vírus e, por isso, é mais difícil lutar contra a COVID-19 do que a varíola. A segunda é que existem reservatórios não humanos e a terceira é que quem já teve a doença pode se infectar novamente. A imunidade contra esse novo vírus (SARS-CoV-2) ainda não foi completamente elucidada.(3)
 
O objetivo das medidas de controle não era principalmente combater o SARS-CoV-2 mas ganhar tempo para desenvolver vacinas e, mais recentemente, vacinar toda a população. No entanto, as medidas de controle deveriam ser ajustadas de acordo com a situação epidêmica e a evolução do vírus, que está em constante mutação.(4)
 
Nesse sentido, compreender o cálculo do limiar de imunidade de rebanho é fundamental para o estabelecimento de novas metas de vacinação. Este limite é baseado na taxa básica de reprodução (R0) do vírus, assumindo que a porcentagem da população vacinada está uniformemente distribuída em todas as faixas etárias e que a eficácia da vacina é próxima a 100%.(5) O cálculo da taxa de reprodução do vírus que surgiu na cidade de Wuhan, China, resultou em um R0 próximo a 3. Portanto, foi considerado o cálculo de [1 - (1/Taxa de Reprodução do Vírus] * [1/Eficácia Vacinal]. Para SARS-CoV-2, usando um valor R0 de 3 e eficácia da vacina igual a 100%, o cálculo seria: [1 - (1/3)] * (1/1)], portanto, [1 - (0,3)] * 1, ou seja, [0,70] * 1, o que resultaria em uma proporção de 70% da população necessária para alcançar a imunidade de rebanho.
 
Porém, nenhuma vacina é 100% efetiva, e mutações no vírus também podem torná-lo mais transmissível e modificar sua taxa de reprodução. Na COVID-19, tal incremento na transmissibilidade ocorreu com as variantes Alfa, Gama e, mais recentemente, Delta do SARS-CoV-2, esta última identificada em meados de 2021, apresentando um aumento significativo em sua propagação para uma taxa de reprodução igual a sete (R0 = 7).(6)
 
O Brasil utilizou diferentes vacinas com diferentes níveis de eficácia. Considerando as duas principais vacinas usadas até o momento, AstraZeneca/Fiocruz e CoronaVac/Butantan, os cálculos precisariam ser modificados. Uma pesquisa avaliando a efetividade dos dois imunizantes em 75.919.840 de pessoas vacinadas no país após um regime completo de duas doses da vacina AstraZeneca/Fiocruz encontrou uma efetividade geral de 72,9% de proteção contra infecção, 88% contra hospitalização, 89,1% contra admissão em UTI e 90,2% contra o óbito. Indivíduos com o esquema de vacinação CoronaVac/Butantan completo tiveram um risco 52,7% menor de infecção, 72,8% menor de hospitalização, 73,8% menor de ir para a UTI e 73,7% menor de óbito (Tabela 1).(7)


 
Os cálculos considerando os diferentes níveis de efetividade das vacinas e o impacto do aumento da taxa de reprodução de 3 para 7 estão apresentados na Tabela 1. Pode-se notar que é provavelmente impossível atingir um limiar de imunidade de rebanho com as novas variantes do SARS-CoV-2, visto que são mais transmissíveis, sendo necessário vacinar mais de 95% da população. As intervenções não farmacêuticas, como o distanciamento físico e o uso de máscaras e soluções antissépticas, continuarão a desempenhar um papel fundamental em manter os casos de COVID-19 baixos em relação à morbimortalidade. O objetivo principal será reduzir o número de hospitalizações e mortes devido à doença ao invés de interromper o trajeto da transmissão viral, embora esta última ajude a reduzir a disseminação de novas variantes.
 
Com o aparecimento de novas variantes e a potencial redução da imunidade contra infecções, surgem novos surtos de COVID-19.(8,9) A perspectiva de longo prazo para a pandemia é que ela provavelmente se tornará uma doença endêmica, assim como a influenza. É improvável que a vacina impeça completamente a propagação do SARS-CoV-2. No entanto, mesmo sem atingir o limiar de imunidade coletiva, a vacinação reduz hospitalizações e óbitos por COVID-19.(5)
 
Atualmente, no Brasil, a prevalência da cobertura vacinal e a ausência de ações farmacológicas não rígidas favorecem a permanência estacionária em cenários de conflagração ou coexistência com o vírus. Nesses cenários, a circulação viral é reduzida mas há uma ocorrência frequente de transmissão local do vírus, e surtos podem ocorrer principalmente na população não vacinada e imunossuprimida.(4)
 
Tanto a infecção por SARS-CoV-2 quanto a vacinação contra COVID-19 induzem uma resposta imune que inicialmente confere altos níveis de proteção contra doença sintomática por COVID-19.(10) Uma das limitações atuais é que não há dados suficientes para estender os achados relacionados à imunidade induzida por infecção para crianças ou pessoas com infecção muito leve ou assintomática. Além disso, a fórmula do limite de imunidade de rebanho é usada para prever o impacto de curto e longo prazo dos programas de vacinação, para justificá-los economicamente e para entender a natureza da imunidade induzida pela vacina.
 
Portanto, a instituição de um programa de vigilância genômica é essencial para monitorar mutações e o surgimento de variantes, principalmente aquelas que fogem ao sistema imunológico. A revisão do limiar de imunidade de rebanho com a ampliação das taxas de cobertura vacinal completa por faixa etária, principalmente na população de maior risco, e estudos que avaliem a duração da imunidade, seja conferida pela doença ou pela vacina, são essenciais para o planejamento de futuras campanhas de reforço vacinal.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
ELNM, PCS, JPC, TC e CMMS contribuíram com a concepção e planejamento do estudo, bem como com a interpretação dos dados, a redação e revisão das versões preliminar e definitiva e a aprovação da versão final.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: World Health Organization. Tracking SARS-CoV-2 variants. Disponível em: https://www.who.int/en/activities/tracking-SARS-CoV-2-variants/.
2.            Schatzmayr H.G. Smallpox, an old foe. Cad. Saúde Pública. 2001; 17(6): 1525-1529. https://doi.org/10.1590/s0102-311x2001000600024.
3.            Sharun K, Tiwari R, Natesan S, Dhama K. SARS-CoV-2 infection in farmed minks, associated zoonotic concerns, and importance of the One Health approach during the ongoing COVID-19 pandemic. Vet Q. 2021 Jan 1;41(1):50-60. https://doi.org/10.1080/01652176.2020.1867776.
4.            Cola JP, Maciel ELN. Infectious disease scenarios in a post-vaccine view of COVID-19 and future pandemics. J. Bras. Pneumol. 2021;47(6): e20210314. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210314.
5.            Fine P, Eames K, Heymann DL. “Herd Immunity”: A Rough Guide. Clinical Infectious Diseases. 2011;52(7):911–916. https://doi.org/10.1093/cid/cir007.
6.            Burki TK. Lifting of COVID-19 restrictions in the UK and the Delta variant. Lancet Respir Med. 2021 de agosto; 9 (8): e85. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(21)00328-3. Epub July 12, 2021.
7.            Cerqueira-Silva T, Oliveira VDA, Pescarini J, et al. Influence of age on the effectiveness and duration of protection in Vaxzevria and CoronaVac vaccines. medRxiv 2021.08.21.21261501. https://doi.org/10.1101/2021.08.21.21261501.
8.            UK [homepage on the Internet]. Department of Health and Social Care. Independent report: JCVI interim advice on a potential coronavirus (COVID-19) booster vaccine programme for winter 2021 to 2022. June 30, 2021. London: UK. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/jcvi-interim-advice-on-a-potential-coronavirus-covid-19-booster-vaccine-programme-for-winter-2021-to-2022.
9.            Centers for Disease Control and Prevention. Joint Statement from HHS Public Health and Medical Experts on COVID-19 Booster Shots. Immediate Release: August 18, 2021. Disponível em: https://www.cdc.gov/media/releases/2021/s0818-covid-19-booster-shots.html
10.          CDC. Science Brief: SARS-CoV-2 Infection-induced and Vaccine-induced Immunity. 2021. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/science/science-briefs/vaccine-induced-immunity.html.
 

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