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Relato de Caso

Pneumonia lipoide secundária ao uso prolongado de óleo de prímula

Lipoid pneumonia secondary to long-term use of evening primrose oil

Marcelo Fouad Rabahi, Andreia Alves Ferreira, João Gabriel Piccirilli Madeira, Paulo Menzel Galvao, Sebastião Alves Pinto

ABSTRACT

Lipoid pneumonia is an underdiagnosed disease that is caused by the aspiration of lipid particles into the lungs. Although most of the reported cases have been associated with the use of mineral oil as a laxative, other lipid substances can also cause the disease. We report the case of a 50-year-old female patient with a complaint of productive cough who was initially diagnosed with bronchial hyperresponsiveness and gastroesophageal reflux disease (GERD). The patient was treated for GERD. Because the productive cough persisted, the patient underwent chest CT, fiberoptic bronchoscopy, and open lung biopsy. She was diagnosed with lipoid pneumonia. The patient was questioned regarding the use of lipid substances, and she reported the chronic use of evening primrose oil. After the discontinuation of the substance and the maintenance of GERD treatment, her condition improved.

Keywords: Pneumonia, lipid; Cough; Plant oils.

RESUMO

A pneumonia lipoide é uma doença pouco diagnosticada, causada pela aspiração de partículas oleosas para dentro dos pulmões. Os casos relatados têm sido relacionados ao uso de óleo mineral como laxativo, mas outras soluções oleosas também podem causar a doença. Relatamos o caso de uma paciente de 50 anos com queixa de tosse produtiva, sendo diagnosticada inicialmente com hiper-reatividade brônquica e doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). A paciente foi submetida a tratamento para DRGE. Devido à persistência da tosse, a paciente foi submetida a TC de tórax, fibrobroncoscopia e biópsia pulmonar a céu aberto, sendo diagnosticada com pneumonia lipoide. A paciente foi questionada quanto ao uso de substâncias oleosas, relatando o uso crônico de óleo de prímula. Com a suspensão do uso da substância e a continuidade do tratamento para DRGE, houve melhora do quadro.

Palavras-chave: Pneumonia Lipoide; Tosse; Óleos vegetais.

Introdução

A microaspiração de substâncias lipídicas pode levar a pneumonia lipoide.(1) Os casos descritos têm sido relacionados ao uso terapêutico de óleo mineral como laxativo por indivíduos que apresentam constipação crônica. Entretanto, outras formas de tratamento com formulações lipídicas podem estar implicadas. Relata-se o caso de uma paciente com pneumonia lipoide exógena crônica secundária ao uso de óleo de prímula.

Relato de caso

Paciente feminina, 50 anos, natural e procedente de Goiânia (GO), sem história de tabagismo. Há mais de 2 anos apresentava quadro de tosse produtiva, sem outras queixas. Ao exame físico, o único achado foi presença de estertores finos esparsos à ausculta pulmonar.

Após a investigação inicial, foi feito o diagnóstico de hiper-reatividade brônquica associada à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), confirmado por broncoscopia pela presença de espessamento da comissura posterior, que também evidenciou muco amarelado nos brônquios do lobo médio e na língula. Foi iniciado o tratamento com omeprazol (40 mg/dia), domperidona e corticosteroide inalatório, e a paciente apresentou melhora parcial do quadro.

Como persistia a tosse, foi realizada TC de tórax, que evidenciou opacidades em lobo médio, segmento inferior da língula e segmento anterior do lobo superior direito, assim como espessamento das bainhas peribrônquicas, e sinais de impactação mucoide (Figura 1). Em seguida, nova fibrobroncoscopia foi realizada, demonstrando que uma grande quantidade de muco amarelado difuso persistia, e a análise microbiológica revelou o crescimento de Staphylococcus aureus (50.000 UFC/mL).





A paciente foi submetida a tratamento com ciprofloxacina (500 mg, 12/12 h) por 21 dias, permanecendo sintomática após seu término.

Por haver recorrência do quadro, foi realizada uma biópsia pulmonar a céu aberto, cujo estudo histopatológico revelou um denso infiltrado inflamatório linfoplasmocitário peribronquiolar e granuloma lipídico, levando ao diagnóstico de pneumonia lipoide (Figura 2). O diagnóstico foi confirmado pelo estudo do lavado broncoalveolar, que mostrou macrófagos espumosos circundados por neutrófilos e restos celulares (Figura 3).










Mesmo diante do diagnóstico de DRGE, tal dado não fora suficiente para definir a causa da pneumonia lipoide. Após nova indagação, a paciente referiu o uso de um fitoterápico para o tratamento de síndrome da tensão pré-menstrual e ansiedade há 12 anos. Solicitada para que trouxesse a medicação, constatou-se que se tratava de óleo de prímula.

O uso do óleo de prímula foi suspenso, e o tratamento antirrefluxo foi mantido, com melhora progressiva do quadro.

Discussão

A pneumonia lipoide exógena resulta da aspiração ou inalação, de forma aguda ou crônica, de partículas oleosas para dentro dos pulmões.(1) Laughlen foi o primeiro a descrevê-la em 1925.(2) A pneumonia lipoide exógena consiste em uma reação inflamatória crônica do parênquima pulmonar com envolvimento do interstício devido ao acúmulo de materiais oleosos nos alvéolos.(3)

A pneumonia lipoide crônica tem sido encontrada em pacientes que fizeram uso, por um longo período de tempo, de óleo mineral como laxativo oral (no tratamento de constipação intestinal) ou em gotas nasais (no tratamento de rinite crônica), óleo animal, como o óleo de fígado de bacalhau (dado a crianças), e óleo vegetal, como óleo de gergelim (para equilibrar os níveis de colesterol).(4) Já a pneumonia lipoide aguda resulta da aspiração acidental e maciça de material lipídico, como no caso de "engolidores de fogo".(5)

Há, porém, o uso de outros tipos de óleo com finalidades terapêuticas e que, portanto, podem ser potencialmente capazes que causar pneumonia lipoide. No caso relatado, a paciente fazia uso de óleo de prímula (óleo vegetal), via oral, há 12 anos para o tratamento de tensão pré-menstrual. Esse fitoterápico também é utilizado para tratar outras doenças, como dermatite atópica, artrite reumatoide, neuropatia diabética, esclerose múltipla, sintomas da menopausa (fogachos) e mastalgia. Sua eficácia, porém, ainda não foi comprovada.(6)

O desencadeamento da pneumonia lipoide, frequentemente, depende de fatores de risco, como doenças gastrintestinais, doenças psiquiátricas e doenças neurológicas que alteram a deglutição ou o reflexo da tosse, assim como perda de consciência.(7) A paciente deste caso relatado foi diagnosticada com DRGE e apresentava, clinicamente, apenas tosse crônica. A DRGE é a terceira causa de tosse crônica em pacientes com radiografia de tórax normal, com uma prevalência que varia de 21% a 41%.(8)

A fisiopatogenia das manifestações respiratórias da DRGE é elucidada por duas grandes teorias que não se excluem: a) teoria do refluxo, segundo a qual o contato direto entre o conteúdo gástrico aspirado e as vias aéreas lesaria as mucosas; e b) teoria do reflexo, segundo a qual o contato do ácido gástrico com a mucosa do esôfago desencadearia um reflexo esôfago-bronquial, mediado pelo nervo vago, gerando a sintomatologia.(9)

Quando há a ingestão de fitoterápicos oleosos, essas substâncias ficam sobrenadantes dentro do estômago.(7) De acordo com a teoria do refluxo, as partículas oleosas ascenderiam e seriam direcionadas, preferencialmente, para a via aérea inferior. Haja vista que o óleo mineral, entre outras substâncias similares, inibe tanto o reflexo de tosse, como a função de transporte do epitélio mucociliar, ocorre a aspiração do material oleoso presente na árvore traqueobrônquica.(5)

A fisiopatologia da pneumonia lipoide devido à aspiração de óleo mineral ou vegetal é, basicamente, uma reação de corpo estranho no pulmão. O óleo aspirado é emulsificado e fagocitado pelos macrófagos alveolares. Esses, repletos de óleo, alcançam o septo interlobular através dos canais linfáticos. Assim, ocorre o espessamento da parede alveolar, e algumas dessas chegam a ser destruídas. Em um estágio posterior, a proliferação fibrótica pode resultar na diminuição do volume pulmonar.(4) A maior parte do óleo coalesce, formando grandes gotas de gordura circundadas por tecido fibroso e células gigantes, criando uma massa tumoral chamada parafinoma.(10) Repetidas e maciças aspirações resultam em uma difusa consolidação do parênquima, semelhante à pneumonia lobar. Uma destruição severa da arquitetura pulmonar pode levar a um pulmão terminal e cor pulmonale.(4)

O quadro clínico da pneumonia lipoide não é específico, dependendo do tempo de exposição e da quantidade aspirada ou inalada de óleo. O paciente pode ser assintomático, ou apresentar tosse crônica, produtiva ou não, e dispneia. Em menor frequência, o paciente tem um quadro de dor torácica, hemoptise, perda de peso e febre intermitente.(7) O quadro clínico pode ter uma apresentação parecida com o de pneumonia bacteriana, com episódios de febre e tosse.(5)

O que ocorre, em geral, é uma discrepância entre os achados clínicos do paciente e a imagem radiográfica. Pacientes com dados clínicos pobres apresentam inúmeros achados na radiografia de tórax, geralmente com envolvimento de múltiplos lobos, com opacidades basais ou difusas.(11) A ausência de relato clínico de ingestão de óleo, somado à inespecificidade do exame, gera, comumente, confusão diagnóstica com câncer de pulmão, ao invés de pneumonia lipoide.(5)

A TCAR é o melhor exame de imagem para o diagnóstico de pneumonia lipoide, revelando consolidações alveolares, opacidades em vidro fosco, lesões nodulares e espessamento de septos interlobulares e do interstício intralobular.(5) No caso clínico em questão, as alterações da TC de tórax, ainda que associadas às alterações clínicas, não foram suficientes para a conclusão diagnóstica. Prosseguiu-se a investigação, com a análise microbiológica do lavado broncoalveolar, sendo encontrado S. aureus mesmo após o tratamento com ciprofloxacina por 21 dias, e a paciente permaneceu sintomática. A presença de óleo nos pulmões pode predispor a pneumonias recorrentes e, inclusive, a infecções por germes atípicos.(12)

Ocasionalmente, a pneumonia lipoide é diagnosticada por biópsia pulmonar realizada para o esclarecimento de pneu­monia comunitária não responsiva à antibioticoterapia.(13) Como o caso continuou irresoluto mesmo após a realização de fibrobroncoscopia e do tratamento antimicrobiano, procedeu-se a uma biópsia pulmonar a céu aberto, e o estudo anatomopatológico indicou pneumonia lipoide, hipótese que não havia sido levantada durante a investigação do caso.

O diagnóstico, quando suspeitado, pode ser feito pela história clínica e exames comple­mentares sugestivos. O lavado broncoalveolar é considerado o método diagnóstico para a pneumonia lipoide, pelo qual se encontra a presença de macrófagos alveolares espumosos com vacúolos lipídicos corados por Sudan.(3) No caso presente, foi utilizada a coloração de Papanicolaou, a qual evidenciou tais macrófagos (Figura 3).

Entretanto, a exemplo da paciente, quase sempre a informação de ingestão de óleo não é fornecida no momento da primeira consulta. Na maioria das vezes, exceto na anamnese dirigida, esse dado é questionado somente após a obtenção de resultados de exames complementares indicando pneumonia lipoide.

Pacientes que utilizam medicamentos fitoterápicos acreditam que, por esses serem substâncias naturais, não representam risco à saúde humana. Incorrem em automedicação, substituem os medicamentos alopáticos por plantas, ou ainda fazem o uso concomitante de ambos. Em consequência disso, muitos omitem a informação do uso dessas substâncias por não conceituá-las como "remédio", impossibilitando o diagnóstico se tais substâncias forem o agente etiológico da moléstia.(14)


Referências



1. Laurent F, Philippe JC, Vergier B, Granger-Veron B, Darpeix B, Vergeret J, et al. Exogenous lipoid pneumonia: HRCT, MR, and pathologic findings. Eur Radiol. 1999;9(6):1190-6.

2. Laughlen GF. Studies on Pneumonia Following Naso-Pharyngeal Injections of Oil. Am J Pathol. 1925;1(4):407-14.

3. Sias SM, Ferreira AS, Daltro PA, Caetano RL, Moreira Jda S, Quirico-Santos T. Evolution of exogenous lipoid pneumonia in children: clinical aspects, radiological aspects and the role of bronchoalveolar lavage. J Bras Pneumol. 2009;35(9):839-45.

4. Kennedy JD, Costello P, Balikian JP, Herman PG. Exogenous lipoid pneumonia. AJR Am J Roentgenol. 1981;136(6):1145-9.

5. Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL, Souza Jr. AS, Neto CA, Nobre LF, et al. Pneumonia lipoídica em adultos: aspectos na tomografia computadorizada de alta resolução. Radiol Bras. 2007;40(5):315-9.

6. Kleijnen J. Evening Primrose Oil: Currently used in many conditions with little justification. BMJ. 1994;309:824-5.

7. Spickard A 3rd, Hirschmann JV. Exogenous lipoid pneumonia. Arch Intern Med. 1994;154(6):686-92.

8. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. II Diretrizes Brasileiras no Manejo da Tosse Crónica. J Bras Pneumol. 2006;32(Suppl 6):S403-S446.

9. Gastal OL, Palombini BC, DeMeester TR, Gastal CP, Corrêa da Silva MM, Macedo S. Influência dos níveis de refluxo gastroesofágico (RGE) na escolha do tratamento de pacientes com tosse crônica. J Pneumol. 1998;24(5):277-80.

10. Adkins D, Bensadoun ES. An 85-year-old man with a lung mass. Chest. 2004;125(3):1121-3.

11. Furuya ME, Martínez I, Zúñiga-Vásquez G, Hernández-Contreras I. Lipoid pneumonia in children: clinical and imagenological manifestations. Arch Med Res. 2000;31(1):42-7.

12. de Albuquerque Filho AP. Exogenous lipoid pneumonia: importance of clinical history to the diagnosis. J Bras Pneumol. 2006;32(6):596-8.

13. Tan JS. Nonresponses and treatment failures with conventional empiric regimens in patients with community-acquired pneumonia. Infect Dis Clin North Am. 2004;18(4):883-97.

14. Veiga Jr. VF. Estudo do consumo de plantas medicinais na Região Centro-Norte do Estado do Rio de Janeiro: aceitação pelos profissionais de saúde e modo de uso pela população. Rev Bras Farmacogn. 2008;18(2):308‑13.




* Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO) Brasil.
Endereço para correspondência: Marcelo Fouad Rabahi. Avenida B, 483, Setor Oeste, CEP 74110-030, Goiânia, GO, Brasil.
Tel 55 62 3521-3333. E-mail: mfrabahi@terra.com.br
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 4/3/2010. Aprovado, após revisão, em 24/5/2010.



Sobre os autores

Marcelo Fouad Rabahi
Professor Adjunto. Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO) Brasil.

Andreia Alves Ferreira
Acadêmica de Medicina. Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO) Brasil.

João Gabriel Piccirilli Madeira
Acadêmico de Medicina. Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO) Brasil.

Paulo Menzel Galvao
Cirurgião Torácico. Hospital São Salvador, Goiânia (GO) Brasil.

Sebastião Alves Pinto
Professor Assistente. Departamento de Patologia, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO) Brasil.

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