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Editorial

Telemedicina, segurança jurídica e COVID-19: onde estamos?

Telemedicine, legal certainty, and COVID-19: where are we?

Marcos Vinicius Fernandes Garcia1, Marco Aurélio Fernandes Garcia2

A recente autorização para as atividades de telemedicina em território nacional aconteceu de forma excepcional, no contexto da coronavirus disease 2019 (COVID-19), sendo válida somente enquanto durar a pandemia.(1) A necessária regulamentação da telemedicina pós-COVID-19 ainda é matéria em discussão e foi objeto de veto presidencial, sob o argumento de que a regulação das atividades médicas por meio de telemedicina após o fim da atual pandemia é matéria que deve ser regulamentada por lei.(2)

A telemedicina tem sido uma ferramenta bem-sucedida e foi a principal inovação tecnológica de amplo alcance implementada durante a pandemia(3); porém, ainda é comum a insegurança jurídica sobre o tema entre os profissionais de saúde e as instituições envolvidas.(4)

A COVID-19 se espalhou por todos os continentes em semanas, superando a capacidade dos sistemas de saúde de rastrear, testar e conter a doença.(5) As atividades de telemedicina evitam o contato próximo, diminuindo a chance de infecção pelo vírus da COVID-19, aceleram a disseminação de informações acuradas, disponibilizando plataformas de ensino, e promovem acesso à opinião de especialistas em locais remotos.(3)

Diversos países severamente afetados pela pandemia desenvolveram e implementaram plataformas de telemedicina. O governo da província chinesa de Shandong, uma das regiões mais atingidas, estabeleceu em março de 2020 um amplo programa de telemedicina fornecendo orientações sobre prevenção e tratamento diretamente para os pacientes, treinamento para os profissionais de saúde e consultoria remota com especialistas para equipes médicas em diversos locais. Essa plataforma foi um grande sucesso e modelo para outras cidades chinesas.(6)

A Itália, por outro lado, encontrou diversas barreiras à telemedicina em meio a um grande numero de pacientes críticos e à baixa disponibilidade de leitos de terapia intensiva. A difusão limitada de soluções de telemedicina em larga escala, a heterogeneidade das ferramentas disponíveis, a fraca interconexão entre os serviços de telemedicina operando em diferentes locais, a falta de uma abordagem multidisciplinar para o gerenciamento do paciente e a falta de diretrizes jurídicas claras foram fatores limitantes ao uso amplo dessa ferramenta.(7)

A telemedicina não é novidade no mundo. A Declaração de Tel Aviv, um dos mais importantes documentos da telemedicina no mundo, foi feita ainda em 1999.(8) Esse fenômeno logo chegou ao Brasil, sendo formulada, em 2002, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM)(9) que definia o que é o serviço de telemedicina, estabelecia a mínima infraestrutura para a sua execução, dispunha sobre a responsabilidade médica e previa o cadastro de empresas operadoras de telemedicina.

Essa resolução permaneceu dormente por 15 longos anos, sendo certo que "a telemedicina, mesmo de forma tímida, já existia e funcionava".(10) Incrivelmente, foi uma nova tentativa do CFM de regular a temática que acarretaria a sua suposta proibição em solo nacional. A Resolução CFM no. 2.227,(11) elaborada entre o final de 2018 e o início de 2019, apresentou diversas inovações aplicáveis à telemedicina e, finalmente, forneceu um arcabouço jurídico robusto para a prestação de serviços de telemedicina no Brasil. Conforme a resolução, estas seriam as modalidades de telemedicina: teleconsulta, teleinterconsulta, telediagnóstico, telecirurgia, teletriagem, telemonitoramento (ou televigilância), teleorientação e teleconsultoria. A redação legislativa reforçava que cada uma das oito diversas modalidades de telemedicina mereceria tratamento diferenciado, ao invés de serem estabelecidas normas gerais para a telemedicina como um todo. É importante notar que essa resolução formalmente revogou a resolução anterior do CFM, de 2002, e ela somente entraria em vigor 90 dias após a sua publicação.

Ocorre que a Resolução CFM no. 2.227(11) teve vida muitíssimo curta já que ela seria revogada antes mesmo de entrar em vigor. Com a reação imediata da comunidade médica, foi elaborada às pressas a Resolução CFM no. 2.228,(12) que revogou integralmente a Resolução CFM no. 2.227,(11) mas expressamente reestabeleceu a Resolução CFM no. 1.643.(9) Assim, foi criada uma confusão jurídica pouco usual. Se a Resolução CFM no. 2.228(12) apenas tivesse revogado a Resolução CFM no. 2.227,(11) sem mais nada a acrescentar, o entendimento seria de que a telemedicina não estava mais autorizada no Brasil. Contudo, ao expressamente restabelecer a vigência da resolução anterior,(9) de 2002, sobre telemedicina, a Resolução CFM no. 2.228(12) não efetivamente proibiu o exercício da telemedicina no Brasil.

O resultado deste imbróglio jurídico é que, tecnicamente, a Resolução CFM no. 1.643(9) ainda está em vigor até os dias atuais. Esse fato ainda gera dúvidas e incertezas na comunidade médica e na mídia; porém, entende-se que a regulamentação do CFM nunca impediu a telemedicina no Brasil. Essa posição é clara tendo em vista que a própria Lei da Telemedicina e a subsequente Portaria no. 467(13) deixaram claro que a telemedicina estaria autorizada no Brasil. Por outro lado, o Código de Ética Médica,(14) publicado em 2019, mantém a proibição de prescrição de tratamento e de procedimentos sem o exame direto do paciente ou por qualquer meio de comunicação ou de massa. Assim, até o mesmo o maior entusiasta da telemedicina estaria receoso em confiar na disciplina da ultrapassada e incompleta Resolução CFM no. 1.643.(9)

A evidente conclusão é que a telemedicina precisa ser propriamente regulamentada para abranger o período após o enfrentamento da COVID-19. Para tanto, devem ser convocadas todas as partes interessadas na sua adoção para que seja construído conjuntamente um arcabouço jurídico adequado para as atividades de telemedicina.

Dados os resultados tão favoráveis no Brasil e no mundo, obtidos em pouquíssimo tempo de telemedicina, é natural se esperar que não ocorram retrocessos, tais como a vedação ao exercício da telemedicina em território brasileiro. A telemedicina se tornou um componente crítico durante a pandemia e potencializou a abrangência dos serviços de saúde, multiplicando a capacidade do sistema para enfrentar a COVID-19. Acreditamos que a telemedicina seja uma peça fundamental para se obter uma vitória definitiva contra a pandemia e não deve ser considerada apenas uma opção ou complemento para reagir a uma crise. Dessa forma, a difusão da telemedicina é um caminho sem volta, e sua regulamentação será lembrada futuramente como um marco histórico no Sistema Único de Saúde.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

MVFG e MAFG foram responsáveis pela elaboração do texto, revisão das referências e produção do texto final.

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Presidência da República. Lei no. 13.989, de 15 de abril de 2020, Artigos 1 e 2. Diário Oficial da União. 16 de abril de 2020;73:(1):1
2. Brasil. Presidência da República. Secretaria Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Mensagem no. 191, de 15 de abril de 2020. Diário Oficial da União. 16 de abril de 2020;73(6).
3. Hollander JE, Carr BG. Virtually Perfect? Telemedicine for Covid-19. N Engl J Med. 2020;382(18):1679-1681. https://doi.org/10.1056/NEJMp2003539
4. Gonçalves C. Jurídico: A busca pela regulamentação da telemedicina. Rev Hosp Brasil [serial on the Internet]. 2014 Apr [cited 2020 Jul 15;66(4):[about 3p.]. Available from: https://telemedicina.fm.usp.br/portal/wp-content/uploads/2015/01/Revista_Hospitais_Brasil_66_Abr2014_.pdf
5. Keesara S, Jonas A, Schulman K. Covid-19 and Health Care's Digital Revolution. N Engl J Med. 2020;382(23):e82. https://doi.org/10.1056/NEJMp2005835
6. Song X, Liu X, Wang C. The role of telemedicine during the COVID-19 epidemic in China-experience from Shandong province. Crit Care. 2020;24(1):178. https://doi.org/10.1186/s13054-020-02884-9
7. Omboni S. Telemedicine During The COVID-19 in Italy: A Missed Opportunity? [published online ahead of print, 2020 Apr 22]. Telemed J E Health. 2020;10.1089/tmj.2020.0106. https://doi.org/10.1089/tmj.2020.0106
8. World Medical Association [homepage on the Internet]. Ferney-Voltaire, France :World Medical Association; [updated 2017 Mar 23; cited 2020 Jul 15]. Archived: Statement on Accountability, Responsibilities and Ethical Guidelines in the Practice of Telemedicine [about 11 screens]. Available from: https://www.wma.net/policies-post/wma-statement-on-accountability-responsibilities-and-ethical-guidelines-in-the-practice-of-telemedicine/
9. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM no. 1.643/2002. Diário Oficial da União. 26 de agosto de 2002;164(1):205.
10. França GV. Direito Médico, 12th ed. Rio de Janeiro: Forense; 2014. p.54.
11. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM no. 2.227/2018. Diário Oficial da União. 6 de fevereiro de 2019;26(1):58.
12. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM no. 2.228/2019. Diário Oficial da União. 6 de março de 2019;44(1):91.
13. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no. 467. Diário Oficial da União. 23 de março de 2020;56-B(1-extra):1.
14. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Resolução CFM no. 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nos. 2.222/2018 e 2.226/2019. Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2019.

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