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Cartas ao Editor

Transplante pulmonar com oxigenação extracorpórea por membrana como suporte intraoperatório

Lung transplantation with extracorporeal membrane oxygenation as intraoperative support

Mariana Schettini-Soares1,a, Pedro Henrique Cunha Leite1,b, Ludhmila Abrahão Hajjar2,c, André Nathan Costa3,d, Paulo Manuel Pêgo-Fernandes1,e, Marcos Naoyuki Samano1,f

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562017000000309

AO EDITOR,

O aprimoramento da técnica do transplante pulmonar bilateral sequencial possibilitou a realização do transplante pulmonar sem a necessidade de circulação extracorpórea (CEC). Sua utilização permanece restrita a apenas algumas situações, como instabilidade hemodinâmica, intolerância à ventilação monopulmonar e em casos de hipertensão pulmonar. A CEC está associada à disfunção primária do enxerto e ao sangramento excessivo pelo consumo dos fatores de coagulação. Dispositivos de assistência como a extracorporeal membrane oxygenation (ECMO, oxigenação extracorpórea por membrana) vêm sendo usados não só no tratamento da disfunção primária do enxerto como também como ponte para o transplante e, mais recentemente, na assistência intraoperatória.

Relatamos o caso de um paciente de 23 anos, sexo masculino, com diagnóstico de fibrose pulmonar por pneumonia intersticial crônica fibrosante e hipertensão pulmonar secundária, com pressão média de artéria pulmonar de 45 mmHg e resistência de 6,52 unidades W. O paciente apresentava um grau de dispneia de 3-4, medido pela escala modificada do Medical Research Council, fazia uso de oxigenoterapia contínua, apresentava edema de membros inferiores controlado após otimização de diuréticos e apresentava nível de brain natriuretic peptide de 538 pg/ml. Seu ecocardiograma mostrava aumento importante das câmaras direitas, disfunção de ventrículo direito, insuficiência tricúspide acentuada e pressão sistólica de artéria pulmonar de 66 mmHg. Em fila para transplante, apresentava um aumento importante da área cardíaca e sinais de insuficiência cardíaca direita, motivo pelo qual indicamos a realização do transplante bilateral com assistência circulatória com ECMO.

O paciente foi submetido à toracotomia bilateral transesternal (tipo clamshell), abertura das cavidades pleurais e pericárdica, observando-se o aumento da área cardíaca à custa das câmaras direitas e de dilatação importante de ventrículo direito. Foi realizada canulação central - aorta, cânula de 20 Fr; e átrio direito: cânula de dois estágios de 28 Fr (Medtronic-Synetics, Skorlunde, Dinamarca) e instalado um sistema de circulação extracorpórea (ECMO PLS System®; Maquet, Rastatt, Alemanha), mantendo um fluxo de 3 l e 2.630 rpm. O paciente apresentava firmes aderências pleuropulmonares, principalmente à direita, necessitando decorticação causando sangramento importante. Foi realizada a técnica convencional de transplante sequencial, inicialmente à direita, com tempo de isquemia de seis horas à direita e de sete horas e quarenta minutos à esquerda. Associou-se um sistema de autotransfusão sanguínea (C.A.T.S.®; Fresenius Medical Care, Bad Homburg, Alemanha) com recuperação de 986 ml de concentrado de hemácias. Devido a distúrbio de coagulação e disfunção de ventrículo direito à inspeção cardíaca, optou-se pelo fechamento em segundo tempo com exteriorização das cânulas e manutenção de ECMO central. O ecocardiograma no 1º dia pós-operatório (PO) confirmou discinesia importante do ventrículo direito. O paciente foi reoperado no 2º PO por sangramento. A anticoagulação foi mantida com heparina não fracionada, guiando-se pelo tempo de coagulação ativada ou tempo de tromboplastina parcial ativada. No 5° PO, foi reduzido o fluxo da ECMO para 1,5 l por 30 minutos, com boa tolerância hemodinâmica e boa saturação, sendo então o paciente encaminhado ao centro cirúrgico e submetido à decanulação após anticoagulação plena e parada de bomba de ECMO, sem repercussão hemodinâmica. Foi realizado fechamento do tórax no mesmo ato operatório. Durante o período em que permaneceu em assistência cardiopulmonar, o paciente permaneceu sedado com midazolam e fentanil, e curarizado com cisatracúrio. No 10° PO já apresentava função sistólica do ventrículo direito normal pelo ecocardiograma. Foi traqueostomizado no 13º PO após duas falhas de extubação, permanecendo na UTI por 26 dias, sendo posteriormente decanulado e recebendo alta hospitalar no 48º PO. Durante a internação não apresentou disfunções orgânicas além da disfunção cardíaca, que motivou a manutenção da ECMO. A imunossupressão realizada, conforme o esquema padrão realizado em nosso serviço, é constituída por basiliximabe na indução anestésica e no 4° PO, com o uso de corticoide, ciclosporina e micofenolato. O paciente não apresentou infecção pulmonar digna de nota; a intercorrência clínica significativa durante a internação foi um abdome agudo perfurativo no 20° PO, com resultante colectomia direita e ileostomia, subsequente à síndrome de Ogilvie. Após o término da ECMO, a anticoagulação foi mantida em dose profilática. A Figura 1 mostra a radiografia de tórax pré-operatória e seis meses após o implante, demonstrando importante remodelamento cardíaco.
 



O uso de circulação extracorpórea acarreta a necessidade de heparinização total para evitar a coagulação do sistema, maior consumo de fatores de coagulação e um processo inflamatório decorrente do contato do sangue com o ar e com o circuito extracorpóreo. Estes fatores elevam o risco de sangramento, com consequente necessidade de transfusão de hemocomponentes, o que por si também levam a inflamação sistêmica. Esse processo inflamatório está associado ao desenvolvimento de edema pulmonar e à disfunção primária do enxerto.(1)

As membranas de oxigenação convencionais de polipropileno mantêm um bom funcionamento por períodos menores do que 3-4 horas; após esse tempo elas começam a apresentar perda da função de troca e extravasamento de plasma, comprometendo ainda mais a coagulação sanguínea e a inflamação. Os transplantes bilaterais podem facilmente ultrapassar esse período, principalmente em casos com firmes aderências pleuropulmonares. Nessas situações, o risco de sangramento pela decorticação pulmonar eleva o risco de desenvolvimento da disfunção primária do enxerto e de mortalidade após o transplante, como foi demonstrado previamente.(2)

O desenvolvimento de membranas de oxigenação revestidas de polimetilpenteno mudou radicalmente o cenário da assistência circulatória, permitindo a manutenção do sistema não mais por apenas algumas horas, mas por dias. Não há dúvida de que o desenvolvimento desse polímero foi a maior mudança dessa técnica nos últimos anos.(3) Aliado a esse desenvolvimento tecnológico, a epidemia de gripe pelo vírus H1N1 difundiu o uso da ECMO como suporte respiratório em casos graves.


No transplante pulmonar, a ECMO pode estar associada tanto ao tratamento da disfunção primária do enxerto como no período prévio ao transplante como ponte para o tratamento. Seu uso como suporte circulatório durante o procedimento cirúrgico foi descrito inicialmente para pacientes com hipertensão arterial pulmonar, instalada perifericamente, podendo ou não ser removida ao final da cirurgia. A canulação periférica foi inicialmente preferida por permitir um campo operatório livre de tubos e facilitar a exposição para o implante com incisões menores.(4) No transplante pulmonar, a CEC com reservatório de cardiotomia possui a vantagem de permitir o manejo mais rápido de volume e aspiração de sangue da cavidade e sua reinfusão, mas seu uso obrigatório fica restrito somente aos casos em que há necessidade de correção de defeitos cardíacos ou de realização de revascularização miocárdica concomitante ao procedimento. Como esses procedimentos conjugados são raros, substituir a CEC pela ECMO é possível na maioria dos casos em que a assistência é necessária. Sua substituição por circuitos revestidos por heparina e a possibilidade de permitir um controle sobre a reperfusão do pulmão recém-implantado tornam factível e vantajoso o uso da ECMO como suporte intraoperatório em substituição à CEC.(5)

Recentemente, alguns autores têm divulgado e comparado a assistência circulatória intraoperatória com ECMO vs. CEC convencional, apresentando vantagens, como menor necessidade de transfusão de hemoderivados, menor tempo de ventilação mecânica e de UTI, assim como menor disfunção primária do enxerto.(5-9) Apenas Bittner et al.,(4) em seu estudo comparativo, mostraram desvantagens para o uso de ECMO, com maior mortalidade e maior necessidade de hemotransfusão. Na única meta-análise sobre esse assunto, Hoechter et al.(10) não observaram uma diminuição da utilização de hemoderivados, mas houve menor tempo de UTI. No entanto, a principal conclusão foi a de que mais estudos sobre o tema são necessários.

Pelo nosso conhecimento, este é o primeiro caso relatado no Brasil de realização de transplante pulmonar com assistência intraoperatória a partir de um dispositivo de ECMO, no qual houve a necessidade de permanência do sistema para evitar a disfunção primária do enxerto e para a readaptação miocárdica. Embora essa seja uma experiência ainda isolada, estudos publicados recentemente mostram vantagens na utilização da ECMO como suporte, principalmente pelo menor tempo de UTI, menor índice de reoperações, menor sangramento e menor necessidade de hemotransfusões, devendo essa ser considerada na realização de transplantes pulmonares com necessidade de assistência circulatória.

REFERÊNCIAS

1. Nagendran M, Maruthappu M, Sugand K. Should double lung transplant be performed with or without cardiopulmonary bypass? Interact Cardiovasc Thorac Surg. 2011;12(5):799-804. https://doi.org/10.1510/icvts.2010.263624
2. Samano MN, Fernandes LM, Baranauskas JC, Correia AT, Afonso JE Jr, Teixeira RH, et al. risk factors and survival impact of primary graft dysfunction after lung transplantation in a single institution. Transplant Proc. 2012;44(8):2462-8. https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2012.07.134
3. Toomasian JM, Schreiner RJ, Meyer DE, Schmidt ME, Hagan SE, Griffith GW, et al. A polymethylpentene fiber gas exchanger for long-term extracorporeal life support. ASAIO J. 2005;51(4):390-7. https://doi.org/10.1097/01.mat.0000169111.66328.a8
4. Bittner HB, Binner C, Lehmann S, Kuntze T, Rastan A, Mohr FW. Replacing cardiopulmonary bypass with extracorporeal membrane oxygenation in lung transplantation operations. Eur J Cardiothorac Surg. 2007;31(3):462-7; discussion 467. https://doi.org/10.1016/j.ejcts.2006.11.050
5. Aigner C, Wisser W, Taghavi S, Lang G, Jaksch P, Czyzewski D, et al. Institutional experience with extracorporeal membrane oxygenation in lung transplantation. Eur J Cardiothorac Surg. 2007;31(3):468-73; discussion 473-4. https://doi.org/10.1016/j.ejcts.2006.11.049
6. Ius F, Kuehn C, Tudorache I, Sommer W, Avsar M, Boethig D, et al. Lung transplantation on cardiopulmonary support: venoarterial extracorporeal membrane oxygenation outperformed cardiopulmonary bypass. J Thorac Cardiovasc Surg. 2012;144(6):1510-6. https://doi.org/10.1016/j.jtcvs.2012.07.095
7. Bermudez CA, Shiose A, Esper SA, Shigemura N, D'Cunha J, Bhama JK, et al. Outcomes of intraoperative venoarterial extracorporeal membrane oxygenation versus cardiopulmonary bypass during lung transplantation. Ann Thorac Surg. 2014;98(6):1936-42; discussion 1942-3.
8. Biscotti M, Yang J, Sonett J, Bacchetta M. Comparison of extracorporeal membrane oxygenation versus cardiopulmonary bypass for lung transplantation. J Thorac Cardiovasc Surg. 2014;148(5):2410-5. https://doi.org/10.1016/j.jtcvs.2014.07.061
9. Machuca TN, Collaud S, Mercier O, Cheung M, Cunningham V, Kim SJ, et al. Outcomes of intraoperative extracorporeal membrane oxygenation versus cardiopulmonary bypass for lung transplantation. J Thorac Cardiovasc Surg. 2015;149(4):1152-7. https://doi.org/10.1016/j.jtcvs.2014.11.039
10. Hoechter DJ, Shen YM, Kammerer T, Günther S, Weig T, Schramm R, et al. Extracorporeal Circulation During Lung Transplantation Procedures: A Meta-Analysis. ASAIO J. 2017;63(5):551-561. https://doi.org/10.1097/MAT.0000000000000549

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