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Relato de Caso

Hemossiderose pulmonar idiopática tratada com azatioprina: relato de caso em criança

Idiopathic pulmonary hemosiderosis treated with azathioprine in a child

Clemax Couto Sant`Anna, Angélica Almada Horta, Mônica Tessinari Rangel Tura, Maria de Fatima Bazhuni Pombo March, Sidnei Ferreira, Rafaela Baroni Aurilio, Débora Brandão Vieira

ABSTRACT

Idiopathic pulmonary hemosiderosis (IPH), the main cause of pulmonary hemosiderosis in children, is characterized by intermittent alveolar bleeding and hemosiderin-laden macrophages in sputum and in gastric lavage. The treatment is based on corticosteroids and cytotoxic drugs, under special conditions. We describe the case of a 7-year-old girl with IPH who achieved partial clinical remission with high doses of corticosteroids. However, the treatment had to be discontinued because the patient developed Cushing's syndrome. Treatment was started with an azathioprine-corticosteroid combination and then changed to azathioprine alone, which was maintained for four years, with excellent results.

Keywords: Hemosiderosis; Azathioprine; Hemorrhage; Case reports [publication type].

RESUMO

A hemossiderose pulmonar idiopática (HPI), principal causa de hemossiderose pulmonar em crianças, cursa com sangramento alveolar intermitente e presença de hemossiderófagos no escarro ou no lavado gástrico. O tratamento é baseado nos corticoesteróides e citostáticos, em condições especiais. Descreve-se o caso de uma menina de sete anos com HPI, que conseguiu controle parcial da doença mediante altas doses de corticoesteróide. O tratamento, no entanto, necessitou ser suspenso gradualmente visto a paciente ter desenvolvido fácies cushingóide. Foi iniciada a associação da azatioprina ao corticóide até a substituição total por azatioprina isolada, cujo uso foi mantido por quatro anos, com ótimo resultado.

Palavras-chave: Hemossiderose; Azatioprina; Hemorragia; Relatos de casos [tipo de publicação].

Introdução

A hemossiderose pulmonar idiopática (HPI) manifesta-se pela tríade: anemia ferropriva, na maioria dos casos, ou hemolítica; hemoptise; e infiltrados pulmonares difusos, desde que outras causas de sangramento intrapulmonar possam ser excluídas. Sua etiologia é incerta, e vários autores defendem uma origem imunológica.(1-3)

O diagnóstico definitivo de HPI é feito na vigência do quadro clínico-radiológico típico associado à identificação de hemossiderófagos no escarro ou lavado gástrico.(2,4)

No momento do diagnóstico, está indicado o uso de corticóides em altas doses (1 a 2 mg/kg/dia). Muitos pacientes apresentam recaídas e necessitam de corticoterapia prolongada. Imunossupressores como azatioprina, ciclofosfamida ou cloroquina, geralmente associados a doses mais baixas de corticóide, são indicados em pacientes com evolução desfavorável sob corticoterapia isolada, ou quando esta for contra-indicada.(1,2,5)

A utilização da azatioprina na HPI geralmente está associada ao corticóide, visando reduzir a dose deste último e evitar o aparecimento de seus efeitos indesejáveis.(2,6-10)

O presente caso descreve o tratamento de HPI a longo prazo com azatioprina isolada, droga cujo emprego em crianças ainda é pouco relatado na literatura.

Relato do caso

Paciente do sexo feminino, 7 anos, parda, procurou a emergência com queixa de hematêmese há uma semana. Trazia exames do início do quadro com hematócrito de 30% e hemoglobina de 8 mg/dL. Referia tosse produtiva há um mês e febre alta esporádica há 15 dias.

Nos últimos dois anos tivera cinco pneumonias tratadas ambulatorialmente, bem como uma internação por pneumonia e anemia há três meses. Negava asma e história de contato com tuberculose.

Ao exame físico, apresentava estado geral regular, emagrecida, taquicárdica, hipocorada e com leve icterícia. Taquidispnéia leve. Murmúrio vesicular diminuído bilateralmente, estertores e sibilos difusos, predominando em base do hemitórax direito. Hepatoesplenomegalia moderada.

À admissão, foram feitos exames laboratoriaiscom os seguintes resultados: hemograma: Hb:5,9 g/dL; Ht: 19.2%; plaquetas: 228.000 mm3; leucócitos: 10,200 mm3; diferenciais: (0/1/0/1/5/71/20/2); reticulócitos, 9.1%; bilirrubina total: 4,5 mg/dL (direta: 1,3 mg/dL; indireta: 3,2 mg/dL) e desidrogenase lática: 221 IU/L.

A radiografia de tórax revelou infiltrado retículo-nodular difuso com áreas de confluência na base esquerda, simulando pneumonia aguda (Figura 1).





Foi iniciado tratamento com oxacilina e azitromicina. No dia seguinte, mantinha-se grave, com piora do hemograma (Hct: 14%, Hgb: 4,2 mg/dL), a despeito da hemotransfusão da véspera. Resultado de crioaglutinina com título de 1:32 direcionou o diagnóstico para anemia hemolítica auto-imune, sendo iniciada pulsoterapia com metilprednisolona.

Recebeu alta após uma semana, com melhora significativa do quadro clínico-radiológico e recuperação da anemia. O diagnóstico de HPI foi estabelecido um mês após, durante nova internação com quadro clínico-radiológico semelhante, que necessitou de hemotransfusão de urgência. Nesta ocasião, foi realizado lavado gástrico, que detectou abundantes hemossiderófagos, permitindo o diagnóstico. A pesquisa de auto-anticorpos revelou anti-ENA, anti-Ro, anti-La, anti-RNP, anti-Sm e anticorpo anticitoplasma de neutrófilos negativos; e fator anti-nuclear positivo com título baixo (1:40), que negativou após quatro meses.

Iniciou-se tratamento com prednisona 2 mg/kg/dia por via oral, com excelente resposta clínica. As tentativas de redução foram sem sucesso, levando à descompensação clínico-radiológica, com doses menores que 1 mg/kg/dia. Evoluiu com fácies lunar grave e, após dez meses de tratamento, foi iniciada azatioprina (2 mg/kg/dia) como droga poupadora de corticóide. Optou-se por redução lenta do corticóide, iniciada após dois meses de uso da azatioprina, e suspensão completa em seis meses. A azatioprina foi mantida isoladamente.

Durante o acompanhamento, apresentou quadros obstrutivos de vias aéreas inferiores, com sibilância, não necessariamente associados a agudizações da doença, porém muitas vezes agravados por elas, e com excelente resposta à corticoterapia inalatória com budesonida 800 µg/dia, que foi iniciada três meses antes do início da azatioprina.

Durante o segundo ano de tratamento com azatioprina, apresentou piora radiológica em três ocasiões, com tosse e hemoptise de pequena monta, não necessitando de corticóide ou internação, apenas aumento e manutenção da dose da azatioprina em 5 mg/kg/dia. Houve excelente resposta clínica, e o exame da difusão de monóxido de carbono, realizado ao final do segundo ano do tratamento com azatioprina isolada, estava dentro da normalidade. A paciente mantém-se, até o presente, quando totaliza quatro anos de acompanhamento, em uso da droga, sem apresentar intercorrências.

Discussão

Infiltrado pulmonar associado à anemia aguda fala a favor de HPI. A anemia hemolítica, com teste de Coombs direto positivo, também pode ocorrer na HPI, sugerindo uma base imunológica e retardando, muitas vezes, o diagnóstico. Nesta paciente, pela confusão com infecção pulmonar complicada por hemólise, o diagnóstico foi direcionando, inicialmente, para infecção por Mycoplasma pneumoniae.

(2) A dosagem de anticorpos contra proteína do leite de vaca, para afastar alergia a este leite, uma das etiologias de hemossiderose,(11) e a comprovação laboratorial da síndrome de Cushing não foram possíveis no presente caso, devido à dificuldade do laboratório do hospital, à época. Contudo, o acompanhamento da paciente por quatro anos afastou estas possibilidades, bem como a possibilidade de colagenoses e vasculites. O corticóide atua favoravelmente nos episódios agudos de hemorragia alveolar; no entanto, ainda não há estudos suficientes que assegurem seu efeito protetor quanto a recaídas ou evolução para fibrose pulmonar na HPI.(1,2,6,7,11) No presente caso, houve benefício da corticoterapia durante as agudizações, motivando, inicialmente, terapia de manutenção com altas doses de corticóide (1 a 1,5 mg/kg/dia). Por outro lado, a azatioprina, iniciada como alternativa de tratamento, diante da vultosa face lunar que a paciente apresentara sob corticoterapia, foi determinante para a manutenção do controle dos sintomas, e permitiu, mais tarde, a suspensão do corticóide sistêmico. Além disso, a droga não desenvolveu qualquer efeito indesejável na paciente, o que ratifica sua boa tolerância em crianças.(10) Como o curso da doença independe, de certa forma, da terapia de manutenção, é difícil a compreensão do real papel do tratamento imunossupressor.(2,4,7) Raramente, o imunossupressor, como droga de segunda linha, permite o controle da doença e a suspensão completa da corticoterapia, como no nosso caso.(1)

Corticóides inalatórios, como a budesonida ou flunisolida, foram usados na HPI como poupadores de corticóide sistêmico, em razão da necessidade de corticoterapia prolongada para a remissão da doença, com resultados variáveis.(7,12-14) Em nossa experiência, o corticóide inalatório, iniciado no sexto mês de tratamento, não o foi com tal intenção, e sim, visou controlar os sintomas sugestivos de hiper-reatividade brônquica desenvolvidos pela paciente.

A grande variabilidade na apresentação clínica da HPI, a natureza intermitente da doença e o desconhecimento dos mecanismos envolvidos em sua patogênese são os maiores desafios quando se tenta comprovar a eficácia dos diversos tratamentos disponíveis, como é o caso dos agentes imunossupressões, corticóides, imunoglobulinas endovenosas ou plasmaferese. As experiências publicadas com estas drogas são limitadas a relatos de casos; no entanto, nas últimas décadas, houve aumento da sobrevida dos pacientes, que foi atribuída ao uso mais difundido de imunossupressores e ao tempo mais prolongado de tratamento da HPI.(1,6,7,9,11)

Referências

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* Trabalho realizado junto ao Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
1. Professor Associado. Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
2. Médica especializada em Pneumologia Pediátrica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
3. Médica Residente em Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
4. Professor Adjunto. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
5. Professor Assistente. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
6. Especializanda em Pneumologia Pediátrica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
Endereço para correspondência: Clemax Couto Sant Anna. Rua Sá Ferreira, 159, ap. 402, Copacabana, CEP 22071-100, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Tel 55 21 2268-8561. Fax 55 21 2590-4891. E-mail: clemax@vetor.com.br
Recebido para publicação em 8/5/2006. Aprovado, após revisão, em 24/10/2006.

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