Diretrizes podem ser definidas como um conjunto de recomendações desenvolvidas de forma sistemática por um grupo de especialistas a partir de evidências disponíveis na literatura médica corrente. Diretrizes têm como objetivo auxiliar profissionais de saúde na tomada de decisões, assim como auxiliar pacientes, em circunstâncias clínicas específicas, na adoção de práticas e comportamentos.(1) De maneira geral, esse conjunto de recomendações tem como objetivos finais, por um lado, melhorar a qualidade da atenção à saúde, através da redução da proporção de decisões inadequadas e, por outro, proporcionar a incorporação mais rápida dos avanços do conhecimento e da tecnologia na prática clínica. As diretrizes contêm recomendações específicas que compreendem aspectos considerados críticos e de maior impacto e que ensejam a confecção de protocolos adaptados à realidade ou ao contexto em que são implementadas.(2,3)
Entretanto, a implementação de protocolos não se traduz em um impacto imediato nos desfechos pretendidos. A falha em se obter esses resultados tem sido definida como "não adesão" às recomendações, a qual, na maioria das vezes, recai sobre a responsabilidade dos pacientes. Além da variável "paciente", outros fatores podem estar associados ou implicados no eventual fracasso de diretrizes. Os obstáculos podem ser devidos às características do próprio protocolo ou diretriz, a fatores relacionados aos pacientes e ao prestador da assistência - nesse caso, o médico - a fatores institucionais ou, ainda, a fatores relacionados ao processo de implementação em si.(4)
Tendo em vista o fato de que a simples disponibilização de diretrizes clínicas não produz um efeito imediato e direto no comportamento médico,(5) Cabana et al. avaliaram, em um estudo de revisão, quais seriam os principais obstáculos à adesão dos médicos às recomendações de diretrizes clínicas.(1) Os autores encontraram 293 barreiras potenciais em 120 tipos diferentes de inquéritos. Essas barreiras foram classificadas como relacionadas ao conhecimento da diretriz (pouca familiaridade ou desconhecimento por parte do médico); à atitude frente às diretrizes (discordância, expectativa negativa quanto aos resultados pretendidos, insegurança quanto à própria capacidade de seguir as recomendações, assim como baixa motivação por inércia, por hábitos ou por procedimentos de rotina previamente estabelecidos); e ao comportamento, decorrente de barreiras externas (fatores relacionados aos pacientes ou às diretrizes propriamente ditas, como recomendações contraditórias) e de fatores ambientais (escassez de tempo, escassez de recursos locais, restrições organizacionais, dentre outros).(1)
Uma revisão sistemática verificou que esses fatores relacionados ao documento, aos profissionais, aos pacientes e ao ambiente estão associados com a adesão a diretrizes.(6)
A adesão do profissional responsável pelo atendimento depende de uma mudança comportamental sólida e consequente. A implementação de diretrizes e a sua adesão na prática clínica constituem apenas parte de um processo que envolve desde o planejamento e elaboração até a sua implementação definitiva, passando pelo levantamento de possíveis obstáculos a sua adoção definitiva.
No que diz respeito aos médicos prestadores da assistência, antes que diretrizes possam, de fato, resultar em desfechos clínicos favoráveis, deve-se primeiro atingir o conhecimento por parte do médico (difusão do conteúdo) para que se promovam atitudes e, em seguida, mudanças comportamentais. Isso se deve ao fato de que modificações comportamentais são mais duradouras e sustentáveis quando são baseadas no conhecimento e na adoção de atitudes ao invés da simples sugestão ou recomendação de mudanças de comportamento.(1)
Mudanças comportamentais envolvem processos mais complexos que passam por etapas já definidas (etapas pré-contemplativa, contemplativa, de preparação, de ação e de manutenção). A investigação dessas etapas em outros contextos demonstrou que cerca de metade dos médicos estavam na fase pré-contemplativa e, portanto, não aptos para modificar seu comportamento, ou seja, aderir às recomendações.(7)
Por outro lado, a adoção de estratégias visando superar barreiras ou obstáculos pode ser bem sucedida em um contexto e mal sucedida em outro local ou circunstância devido à presença de diferentes obstáculos. A eficácia depende, então, não apenas da intervenção propriamente dita (elaboração de recomendações), mas também da presença e da magnitude dos obstáculos existentes.
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Conterno et al. relatam o impacto da implantação de um protocolo de atendimento inicial para pacientes portadores de pneumonia adquirida na comunidade (PAC) admitidos em um hospital geral. Os autores verificaram prospectivamente a prática da assistência aos pacientes portadores dessa condição em um período de dez meses anteriores à implantação do protocolo e a compararam aos resultados observados no período seguinte de seis meses após a implantação do mesmo.(8) Nesse período, foram internados na enfermaria de clínica médica 102 pacientes com diagnóstico de infecção respiratória, sendo que PAC foi diagnosticada em 68 (66,6%). Em comparação com o período anterior à implantação do protocolo, observou-se uma modificação no padrão de prescrição de antibióticos, sendo as alterações principais o aumento da prescrição da associação de um beta-lactâmico com um macrolídeo, que passou de 6,3% (3/48 pacientes) para 75% (15/20 pacientes; p < 0,001), o que estava em conformidade com a diretriz, e a interrupção do uso de ciprofloxacina, que fora de 18% (9/48) no período anterior e passou a 0% (0/20; p = 0,038) no período seguinte.
Entretanto, não se observou melhora em relação ao registro nos prontuários de certos procedimentos, como a utilização de um escore de predição de mortalidade recomendada no protocolo, assim como a anotação da SpO2. A taxa de mortalidade geral observada foi semelhante nos dois períodos, embora se deva realçar o fato de que o estudo não teve poder suficiente para verificar diferenças significativas nesse aspecto. A influência do tempo decorrido até o início do tratamento não pôde ser avaliada pois foi mantida a programação de horário padrão da administração dos medicamentos. Outras limitações do estudo se referem à amostra pequena de pacientes, à curta duração de observação, especialmente no período pós-implementação - não contemplando, nas duas fases, uma sazonalidade completa - e à sua característica unicêntrica, que dificulta sua generalização, especialmente se considerarmos os diferentes contextos e suas respectivas limitações e obstáculos para a adoção de diretrizes.
Observa-se, então, que a principal modificação se referiu à prescrição de antibióticos que, embora constitua um dos pontos importantes relacionados à qualidade do atendimento a pacientes portadores de PAC, não esgota em si todo o complexo processo de atenção a esses pacientes. Alguns desses aspectos fundamentais, que traduzem a qualidade da atenção e que devem ser mencionados, são os procedimentos de diagnóstico (clínico e radiológico); a avaliação por um escore de gravidade e pela SpO2,(9) a qual influencia, pelo menos em parte, a decisão do local do tratamento, a intensidade e a otimização do tratamento; a escolha(10,11) do antibiótico, da via de administração e do momento de início de seu uso,(12) fatores esses que impactam no risco de morte; a duração do tratamento; e os critérios de alta hospitalar. Em um contexto ideal e em se tratando do manejo da PAC, esses aspectos deveriam ser todos contemplados para que os desfechos principais (morbidade, mortalidade e custos) fossem de fato alcançados.
Nesse sentido, Marrie et al. al. compararam uma estratégia convencional de atendimento (a critério do plantonista) a pacientes portadores de PAC no Canadá (n = 1.027) com a implantação de uma estratégia de atendimento desse tipo de paciente (n = 716), a qual incluía procedimentos padronizados de diagnóstico, avaliação da gravidade, decisão do local do tratamento, escolha do antibiótico, duração do tratamento, critérios para a modificação da via de administração e critérios de alta.(13) Os resultados mostraram uma redução estatisticamente significativa no número de admissões hospitalares de pacientes de menor risco, redução da permanência hospitalar, redução dos dias de antibioticoterapia venosa, menor utilização de leitos-dia para o tratamento e maior proporção de pacientes tratados em monoterapia (levofloxacina), sem, contudo, haver aumento de efeitos adversos ou de complicações.
Entretanto, deve-se ressaltar a importância da iniciativa dos autores que abrangeram vários aspectos relacionados à assistência e à adoção de diretrizes e que vem corroborar a recomendação de que diretrizes clínicas devem ser adaptadas à realidade local, levando-se em conta as características epidemiológicas dos pacientes, as condições e necessidades estruturais e institucionais, assim como a condição do médico responsável pelo atendimento.
O reconhecimento da complexidade e dos diversos fatores envolvidos no processo de elaboração e implementação de diretrizes clínicas poderá tornar as suas recomendações mais aplicáveis e propiciar um aprimoramento significativo e definitivo da qualidade da assistência prestada aos pacientes portadores de PAC e de outras condições.
Ricardo de Amorim Corrêa
Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG) Brasil
Referências
1. Cabana MD, Rand CS, Powe NR, Wu AW, Wilson MH, Abboud PA, et al. Why don't physicians follow clinical practice guidelines? A framework for improvement. JAMA. 1999;282(15):1458-65.
2. Audet AM, Greenfield S, Field M. Medical practice guidelines: current activities and future directions. Ann Intern Med. 1990;113(9):709-14.
3. Chassin MR. Practice guidelines: best hope for quality improvement in the 1990s. J Occup Med. 1990;32(12):1199-206.
4. Cabana MD, Kiyoshi-Teo H. The broader picture on guideline adherence. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2010;34(6):593-4.
5. Lomas J, Anderson GM, Domnick-Pierre K, Vayda E, Enkin MW, Hannah WJ. Do practice guidelines guide practice? The effect of a consensus statement on the practice of physicians. N Engl J Med. 1989;321(19):1306-11.
6. Francke AL, Smit MC, de Veer AJ, Mistiaen P. Factors influencing the implementation of clinical guidelines for health care professionals: a systematic meta-view. BMC Med Inform Decis Mak. 2008;8:38.
7. Prochaska JO, DiClemente CC. Stages and processes of self-change of smoking: toward an integrative model of change. J Consult Clin Psychol. 1983;51(3):390-5.
8. Conterno LO, Moraes FY, Silva-Filho CR. Implementation of community-acquired pneumonia guidelines at a public hospital in Brazil. J Bras Pneumol. 2011;37(2):152-59.
9. Blot SI, Rodriguez A, Solé-Violán J, Blanquer J, Almirall J, Rello
J, et al. Effects of delayed oxygenation assessment on time to antibiotic delivery and mortality in patients with severe community-acquired pneumonia. Crit Care Med. 2007;35(11):2509-14.
10. Gleason PP, Meehan TP, Fine JM, Galusha DH, Fine MJ. Associations between initial antimicrobial therapy and medical outcomes for hospitalized elderly patients with pneumonia. Arch Intern Med. 1999;159(21):2562-72.
11. Mortensen EM, Restrepo M, Anzueto A, Pugh J. Effects of guideline-concordant antimicrobial therapy on mortality among patients with community-acquired pneumonia. Am J Med. 2004;117(10):726-31.
12. Houck PM, Bratzler DW, Nsa W, Ma A, Bartlett JG. Timing of antibiotic administration and outcomes for Medicare patients hospitalized with community-acquired pneumonia. Arch Intern Med. 2004;164(6):637-44.
13. Marrie TJ, Lau CY, Wheeler SL, Wong CJ, Vandervoort MK, Feagan BG. A controlled trial of a critical pathway for treatment of community-acquired pneumonia. CAPITAL Study Investigators. Community-Acquired Pneumonia Intervention Trial Assessing Levofloxacin. JAMA. 2000;283(6):749-55.