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Relato de Caso

Derrame pleural por micobactéria não tuberculosa

Pleural effusion caused by nontuberculous mycobacteria

Márcia Seiscento, Sidney Bombarda, Adriana Castro de Carvalho, José Ribas Milanez de Campos, Lisete Teixeira

ABSTRACT

Mycobacterium kansasii, a nontuberculous mycobacterium, can cause pulmonary disease presenting clinical and radiological similarities to tuberculosis. M. kansasii infection has been associated with risk factors such as bronchiectasis, chronic obstructive pulmonary disease, tuberculosis sequelae, pneumoconiosis and immunosuppression. Herein, we describe a case of pleural effusion in a 67-year-old patient with chronic obstructive pulmonary disease and a history of pulmonary tuberculosis. The histological analysis demonstrated a granulomatous chronic process and acid-fast bacilli positivity, suggesting a diagnosis of pleural tuberculosis. M. kansasii was detected both in pleural fluid cultures and in cultures of tissue samples. We discuss the differential etiologic diagnosis with other infectious agents of granulomatous diseases, and we address treatment options.

Keywords: Mycobacterium kansasii; Mycobacterium infections; Pleural effusion; Case reports

RESUMO

O Mycobacterium kansasii, micobactéria não tuberculosa, pode causar doença pulmonar com manifestação clínico-radiológica semelhante à tuberculose. Estão associados fatores de risco: bronquiectasias, doença pulmonar obstrutiva crônica, seqüela de tuberculose, pneumoconiose e imunossupressão. Relata-se um caso de derrame pleural, em paciente de 67 anos, com doença pulmonar obstrutiva crônica e antecedente de tuberculose. O diagnóstico de tuberculose pleuropulmonar foi sugerido pelo exame anatomopatológico de pleura, que demonstrou processo crônico granulomatoso e presença de bacilo álcool-ácido resistente. Nas culturas de líquido e tecido pleurais foi detectado Mycobacterium kansasii. Discute-se o diagnóstico diferencial com outros agentes infecciosos na doença granulomatosa pleural e tratamento.

Palavras-chave: Mycobacterium kansasii; Micobacteriose; Derrame pleural; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

O Mycobacterium kansasii pertence a um grupo de microorganismos conhecidos como micobactérias não tuberculosas (MNT). É um bacilo álcool-acidorresistente reconhecido pelas suas características de fotocromogenicidade (produz pigmento amarelo quando exposto à luz) e crescimento lento (duas a quatro semanas). Tem sido citado como a segunda causa de doença pulmonar produzida por MNT, sendo precedido pelo complexo Mycobacterium avium.(1)

Diferente de outras MNT que habitam normalmente o meio ambiente, o Mycobacterium kansasii não é encontrado em águas naturais ou no solo; entretanto, tem sido isolado em reservatórios de água e encanamentos. É considerado a mais virulenta entre as micobactérias causadoras de doença e eventualmente um agente colonizador. A transmissão pode ocorrer por via inalatória, aspiração de conteúdo gástrico ou infecção localizada na pele. No pulmão, esta micobactéria pode desencadear uma doença com características clínicas e aspectos de imagem semelhantes à tuberculose. A doença ocorre principalmente entre a população de imunossuprimidos, como os pacientes submetidos a transplantes, portadores de doenças linfoproliferativas ou aqueles com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Em outros pacientes, está freqüentemente associada à doença pulmonar obstrutiva crônica, história de tuberculose prévia, pneumoconioses, bronquiectasias e doença esofágica associada a aspiração crônica de material esofágico.(2-3)

Apresentamos o caso de um paciente com derrame pleural causado por Mycobacterium. kansasii, com doença pulmonar obstrutiva crônica e antecedente de tuberculose, com o objetivo de discutir o diagnóstico diferencial com outras infecções que desencadeiam processo crônico granulomatoso na pleura, principalmente a tuberculose.

RELATO DO CASO

Um paciente de 67 anos, do sexo masculino, branco, vendedor, apresentou-se com queixas de dispnéia aos mínimos esforços e dor torácica havia 30 dias. Negava hemoptise, tosse, febre, sudorese noturna ou emagrecimento. Ex-tabagista de 48 anos-maço, com cessação do hábito de fumar havia seis anos, referia antecedentes de hipertensão arterial, doença pulmonar obstrutiva crônica e tuberculose havia 33 anos. Ao exame físico encontrava-se afebril, emagrecido e com murmúrio vesicular reduzido em hemitórax esquerdo.

Apresentava hemograma e funções renal e hepática normais. A radiografia e a tomografia computadorizada de tórax evidenciaram derrame pleural à esquerda, associado a bandas, bronquiectasias e nódulos calcificados em ambos os campos superiores (Figura 1).






Foi submetido a toracocentese e biópsia pleural por agulha de Cope. A análise do líquido pleural demonstrou um líquido sero-hemorrágico, com características bioquímicas compatíveis com exsudato, segundo os critérios de Light.(4) Os valores encontrados no líquido pleural foram desidrogenase lática de 1.882 U/L, proteína total de 5,2 g/dL, glicose de 83 mg/dL e adenosina desaminase de 98,5 U/L. A citologia apresentou número total de células nucleadas de 600 por mm3, com ausência de células mesoteliais, 1% de macrófagos e 99% de leucócitos, com 95% de neutrófilos, 4% de linfócitos, 1% de monócitos, 0% de basófilos e 0% de eosinófilos. Não foram observadas células neoplásicas. As pesquisas diretas para bacilo álcool-acidorresistente, Gram e fungos foram negativas. O exame anatomopatológico do fragmento pleural demonstrou um processo crônico granulomatoso com a presença de bacilos álcool-acidorresistentes.

Com base na história clínica, nas características de imagem, na bioquímica e citologia do líquido pleural e no exame anatomopatológico de pleura, foi sugerido o diagnóstico de tuberculose pleural e infecção bacteriana concomitante. Foi iniciado o tratamento para tuberculose com esquema I (rifampicina, isoniazida e pirazinamida) e realizada a drenagem torácica tubular, porém como o débito pleural manteve-se elevado (> 300 ml/dia) e neutrofílico por mais de quinze dias, optou-se pela realização de toracostomia, com colocação de prótese de Filomeno (Figura 2).(5)





Após 60 dias da punção e biópsia de pleura, foi identificado, em várias amostras de cultura do líquido pleural e no fragmento pleural, o Mycobacterium kansasii.

Com os resultados destas culturas, o esquema quimioterápico foi alterado para rifampicina, isoniazida, etambutol e claritromicina. Após dois meses de tratamento, houve negativação da cultura do líquido pleural, com melhora clínica e controle do derrame pleural. O paciente evoluiu com discreto espessamento pleural, sem repercussão funcional, permanecendo com toracostomia durante um ano e tratamento quimioterápico por dezoito meses.

DISCUSSÃO

Entre as infecções pleurais que produzem processo inflamatório crônico granulomatoso, a causada por Mycobacterium tuberculosis é a mais freqüente. Esta forma de processo inflamatório também pode ser observada na artrite reumatóide, na sarcoidose e nas infecções por MNT, fungos (Candida sp, Aspergilus sp, Cryptococcus neoformans, Coccidioides immitis, Hystoplasma capsulatum, Sporothirix schenckii) e bactérias (Acytinomyces israelli e Nocardia sp).(6)

Nos processos granulomatosos pleurais infecciosos, em 95% dos casos o primeiro diagnóstico sugerido é o de tuberculose. Como a baciloscopia direta do líquido pleural é positiva em menos de 10% dos casos e a cultura do líquido pleural e/ou fragmento também apresentam baixa sensibilidade, variando de 11% a 70% em diferentes estudos,(1,7) o diagnóstico de tuberculose tem sido sugerido com base na história clínica, aspectos bioquímicos, adenosina desaminase e citologia do líquido pleural, em associação ou não com a histologia pleural de processo crônico granulomatoso. Para a confirmação do diagnóstico, quando não há etiologia confirmada por cultura, utiliza-se o parâmetro de melhora clínica após o tratamento específico. Outros agentes, embora raros, devem ser pesquisados em pacientes que apresentam fatores de risco como co-morbidades, deficiência imunológica e/ou idade avançada.(1, 3, 6)

Em países desenvolvidos, a infecção pelas MNT tem apresentado um aumento em sua incidência, relacionado principalmente com a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, outras imunossupressões, doença pulmonar obstrutiva crônica e talvez também pela melhora nas técnicas de diagnóstico e reconhecimento clínico da doença.(1) Em um estudo realizado na Califórnia (EUA), foram identificados 270 casos de Mycobacterium kansasii, sendo 69% dos pacientes positivos para o vírus da imunodeficiência humana.(2) É interessante observar que nos pacientes negativos para o vírus da imunodeficiência humana, a identificação da micobactéria foi freqüentemente associada à média de idade de 60 anos e a doenças crônicas.

Na literatura nacional, especula-se que a doença pulmonar relacionada ao Mycobacterium kansasii ou a outras MNT esteja subestimada e muitos casos podem estar sendo tratados como tuberculose. Esta hipótese baseia-se no fato de não ser rotineira a identificação das micobactérias e de que o esquema terapêutico utilizado para o tratamento da tuberculose contém drogas parcialmente eficazes para o tratamento das MNT.(8-9)
Em um estudo realizado no Instituto Adolfo Lutz de São Paulo, no período de 1995 a 1999, de 9.381 micobactérias identificadas, 10% eram representadas por MNT. O Mycobacterium kansasii foi a segunda mais freqüente (3,2%), sendo precedido pelo complexo Mycobacterium avium.(10)

O conceito de colonização pulmonar das MNT, sem desencadear doença, é controverso, principalmente quando o agente é o Mycobacterium kansasii, Mycobacterium gordonae ou complexo Mycobacterium avium. Considera-se doença, de acordo com os critérios da American Thoracic Society,(3) a presença de lesões pulmonares e repetidas culturas com identificação de MNT em pelo menos três amostras de escarro, ou a análise histológica demonstrando processo crônico granulomatoso e cultura de tecido positiva. Em material estéril, a cultura e identificação de MNT em apenas uma amostra de líquido pleural ou cefalorraquidiano é suficiente para o diagnóstico.

Clinicamente, a infecção pulmonar por Mycobacterium kansasii assemelha-se à tuberculose, com início insidioso de tosse produtiva, sudorese noturna, perda de peso e hemoptise. As alterações radiológicas pulmonares também são semelhantes às da tuberculose, sendo descritas cavitações em segmentos posteriores dos lobos superiores, nódulos e derrame pleural, com menor freqüência. (11-12)

No presente caso, a tuberculose pleural foi o primeiro diagnóstico sugerido pelas alterações pulmonares (bronquiectasias e nódulos) em exames de imagem sugestivos de tuberculose e pelo exame anatomopatológico de pleura demonstrando processo crônico granulomatoso, com a presença de bacilo álcool-acidorresistente. As características bioquímicas e citológicas do líquido pleural demonstrando um exsudato, com desidrogenase lática muito elevada, e predomínio persistente de neutrófilos sugeriram também a possibilidade de infecção bacteriana ou fúngica concomitante. Na tuberculose pleural, no início do processo inflamatório pode ocorrer predomínio de neutrófilos, porém após alguns dias os linfócitos T predominam no líquido pleural. A persistência de líquido neutrofílico na tuberculose pleural pode estar associada a infecção bacteriana concomitante.(6)

A drenagem pleural, de acordo com o consenso do American College of Chest Physicians,(13) é necessária nos casos de empiema e derrame parapneumônico moderado ou volumoso que apresentam gram ou cultura positiva, ou pH inferior a 7,2. No entanto, também deve ser considerada a drenagem pleural quando existe recidiva do derrame, devido ao risco de loculações, ou piora clínica. A toracostomia é indicada quando a drenagem tubular precisa ser prolongada ou é ineficaz, ou em pacientes muito debilitados.

Derrame pleural com identificação do Mycobacterium kansasii no líquido e no fragmento pleural é incomum na literatura. Foi descrito um caso de derrame pleural e pneumotórax por Mycobacterium kansasii em um paciente não imunossuprimido, que evoluiu com loculação do líquido pleural, tendo sido necessária a decorticação.(14) Foi também relatado um caso em paciente que apresentava infecção pulmonar por Mycobacterium kansasii e concomitante derrame pleural.(15)

O tratamento recomendado para o Mycobacterium kansasii deve associar no mínimo três drogas: isoniazida, rifampicina e etambutol. A claritromicina pode ser associada em caso de intolerância, resistência ou contra-indicação ao uso da rifampicina e isoniazida. Os aminoglicosídeos estão indicados em casos de micobacteriose disseminada e cavitações.
Outros antibióticos que podem ser utilizados são as quinolonas.(1,3,16)

Em conclusão, ainda que o derrame pleural por MNT seja raro, a sua presença deve ser considerada em pacientes com derrames pleurais de difícil resolução, principalmente, se associados a imunossupressão, seqüelas de tuberculose, doença pulmonar obstrutiva crônica ou outras co-morbidades. A solicitação de cultura e identificação de micobactérias no líquido pleural deve ser rotineira, mesmo considerando-se as dificuldades de detecção dos agentes envolvidos.

REFERÊNCIAS

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* Trabalho realizado na Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) Brasil.
1. Médica Assistente da Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) Brasil.
2. Médica residente da Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) Brasil.
3. Médico Assistente do Serviço de Cirurgia de Tórax da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) Brasil.
Endereço para correspondência: Márcia Seiscento. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar N ° 44, andar AB, CEP 05403-000
São Paulo (SP) Brasil. Tel.: 55 11 3069-5034. E-mail: 600@uol.com.br
Recebido para publicação, em 16/12/04. Aprovado, após revisão, em 9/3/05.

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